domingo, 22 de março de 2020

"A vida não tem garantias"

Mais de uma vez escrevi que a escrita é a forma pela qual eu me organizo. Não só me organizo, como me amparo. Como diz P., cada um dá o jeito que pode. O meu é esse.

Escrevendo sou até capaz de esquecer, por alguns segundos, que o mundo lá fora está em suspensão, à espera daquilo que sabemos sem saber ou sem querer saber. O clássico não quero saber disso, pois isso é difícil demais de saber.

Na última sexta-feira, dia 13, meu psiquismo entrou numa espiral de sim e não, não e sim, até que no domingo, quinze, o não foi descartado e o sim se acomodou com força. Sim, é grave. Sim, fica em casa o máximo que der. Sim, torne-se obsessiva com limpeza. Sim, aceite e faça o que tem que ser feito.

Terça-feira, dezessete. O dia começa com o trabalho suspenso e com a constatação de que, em casa, não tem nada para cozinhar. Remédios? Tem ibuprofeno, mas esse não pode. Saio, sem querer sair e, na volta, estou um caco. Descubro que sair de casa se transformou numa missão quase impossível, como se as ruas fossem feitas de dinamite prestes a explodir.

Começo a pensar em como será depois. Depois quando? Será que um dia eu vou voltar a me sentir segura fora de casa, mesmo quando tudo estiver bem? Será que eu vou esquecer que não precisa mais ter medo, ou vai sempre ficar um restinho dessa sensação de perigo invisível? Outras pessoas devem estar sentindo a mesma coisa, não devem? Como será para elas?

Quarta, quinta, sexta, sábado. Os dias seguem numa tentativa tímida de não deixar que as horas escorram na tela das informações infinitas, das comunicações incessantes, até que hoje, domingo, acordo envolta por uma sensação informe e difusa, mas confortável.

Já perdi a conta das vezes em que a voz de P. chegou até mim no divã dizendo que a vida não tem garantias. Que tudo é uma grande aposta. E todas as vezes que isso acontece eu paro e silencio. O que dizer, afinal, diante da verdade? Só que por mais que saibamos, por exemplo, que vamos todos morrer um dia ou que não conseguiremos tudo o que queremos, seguimos a vida sem pensar muito na morte e com a esperança de que vamos nos apoderar de todos os nossos desejos. Seguimos com a certeza, mesmo que falsa, de que as coisas têm sim alguma garantia, de que a morte está longe e de que conseguiremos tudo o que queremos (pastores e couchs liderando o coro da ilusão neste último quesito). Só que aí, bom, aí vem um vírus, minúsculo, invisível a olho nu, e derruba o nosso castelo de cartas, deixando a fragilidade das nossas estruturas escancaradas.

Teremos de lidar, a partir de agora e, no meu caso e no da maioria das pessoas que eu conheço, como nunca antes, com os efeitos da frase a vida não tem garantias. Teremos que nos adaptar a uma nova vida e, não menos importante, fazer o luto da antiga, já que é improvável que o mundo seja o mesmo depois do que está acontecendo (o que, claro, também é uma aposta sem garantias).

A palavra que define a sensação que me envolvia ao acordar hoje é adaptação. É como se o não das garantias que a vida não tem tivesse também se acomodado, assim como o sim do faça o que tem que ser feito lá do início deste texto. Como se sim e não tivessem encontrado os seus devidos lugares. Pelo menos por hoje.

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