domingo, 29 de março de 2020

Entregando o ouro

Nos últimos dias venho recebendo mensagens que expressam preocupação com o meu estado emocional em virtude de textos que escrevi recentemente, já no período da quarentena. Pois bem, vamos lá. Agradeço a preocupação, mas fiquem tranquilos. Aqui no décimo andar do meu rochedo no sem saída de uma rua que leva o nome de um escritor, tudo vai, embora o advérbio soe um pouco deslocado nos dias atuais, bem.

Sobre os textos, os meus ou os de qualquer outra pessoa, a coisa não funciona, digamos, tão preto no branco. Aliás, não funciona assim.

Ao analisar uma criação, é sempre necessário ter em mente que aquilo que extraímos dela é baseado na nossa realidade. Em outras palavras, interpretamos aquilo que estamos lendo, ouvindo, vendo etc. a partir da nossa realidade, da nossa fantasia. A realidade é, para cada um de nós, uma realidade própria, criada pela nossa fantasia. A nossa relação com o mundo, com os outros e, consequentemente, com as criações artísticas, se dá no nível do imaginário, de novo, da fantasia, e é por esse motivo que nunca, nenhum de nós, entenderá completamente o outro ou será completamente entendido por ele ou abarcará totalmente a compreensão de uma obra. Daí a precariedade de enquadrar obras e artistas a partir da interpretação das suas respectivas criações. Quem enquadra o faz a partir de si mesmo, não do artista, não da obra, e acaba cometendo um equívoco. A realidade, aliás, é algo tão singular que, por exemplo, no caso das mensagens, o mesmo texto que causou preocupação em algumas pessoas reverberou em outras de uma maneira completamente diferente. Nestas, as palavras tocaram naquilo que elas estavam sentindo, dando, talvez,  um contorno, um nome para esses sentimentos. Mas essa também é só a minha interpretação. 

O que eu quero dizer com isso tudo é que não dá para concluir nada a meu respeito a partir do que eu escrevo, já que a conclusão, no caso, não passa de uma fantasia. Do outro, não minha. Mais exemplos. Quando Eliane Brum escreve, em seu livro Meus desacontecimentos, que a insônia é algo da sua vida, não se pode concluir, a partir disso, que a depressão ou a melancolia também o sejam. Tampouco é possível concluir, a partir da leitura do seu livro Uma Duas, que o que está posto ali seja o retrato fiel da relação da autora com a sua mãe. Do texto de Eliane, em muitos casos fortíssimo, como o do segundo livro mencionado, não se pode simplesmente concluir que ela não esteja bem. O que eu posso concluir da leitura dos livros e textos de Eliane Brum é que nela há algo que toca em mim, que me emociona, que me faz pensar, que me inspira, que me transforma. Posso concluir que ela tem o talento de colocar em palavras o que é da ordem do humano, o que, por si só, já faz dela uma escritora fabulosa. Outro exemplo. Elena Ferrante é um pseudônimo para alguém que escreve sem ter sua identidade revelada, o que incomoda muita gente. Eu pergunto, qual é, no caso, a relevância da identidade da autora frente à sua obra? A resposta é zero. O obra fala por si, toca por si. O que importa é a obra e não as especulações acerca da vida ou da subjetividade de Ferrante. De uma criação artística não se conclui nada a respeito do seu autor, sente-se. O que importa não é a origem da criação e sim o que ela faz conosco. Qualquer conclusão é subjetiva, é de quem consome a obra.

Além disso, a escrita é uma rua que nunca é sem saída. Quem escreve pode criar o que quiser, pode se aventurar, pode se deixar levar, pode abrir caminhos, construir pontes, fazer com que as águas do mar se repartam para dar passagem. Aqui a onipotência existe e é possível criar um universo inteiro com o próprio corpo (escrever é também do corpo). Escrever é, a propósito, entre outras coisas, uma brincadeira. Freud diz, em um de seus textos, cujo nome agora não vou lembrar, que o escritor brinca com as palavras (alguém me corrija se eu estiver equivocada, por favor), e é exatamente isso o que acontece. As palavras são eternos brinquedos que nós utilizamos para organizar nosso mundo, para nos organizar. Pegamos as palavras com as mãos e as misturamos com outras, as trocamos de lugar, deixamos uma de lado e escolhemos outra, escondemos coisas atrás delas, às vezes elas se escondem de nós. Elas são, para alguns, o brinquedo escolhido para construir abrigos de proteção contra as intempéries da realidade.

E aqui podemos abordar mais um ponto acerca da temeridade de algumas conclusões tiradas a partir de qualquer criação. Em resumo, quando a coisa acontece, é porque o pior já passou. É porque já é possível voltar a brincar. No meu caso é dificílimo escrever quando não estou bem, quando ainda estou no meio da tormenta. A partir da minha experiência, que não posso generalizar mas que tomo aqui como parâmetro, eu diria que, criou, opa, sublimou. Ou pelo menos está em vias de sublimar. Está num bom caminho. O que estava lá, encolhido, reprimido, acossado, ganha um corpo, uma direção, e pode sair por aí. Pode se libertar. A criação, esse processo escancaradamente inconsciente, literalmente sai. É um fluxo, uma necessidade, uma força que precisa de vazão e que, quando vaza, pode formar um rio, um mar, um lago, pode ter cores e tamanhos diferentes. Eu nunca sei o que virá e não raro estranho o que aparece na tela ou no papel, como se não fossem minhas as palavras que são o que de mais meu há em mim. Como eu disse aqui, brincando com as palavras de P., cada um dá o jeito que pode e criar é um jeito excelente de se dar.

Para terminar, um outro ponto que me chama a atenção já há algum tempo, a reação ao fracasso. Eu sou uma grande entusiasta do fracasso por ser ele que, em grande medida, nos constitui, nos torna humanos. Vejam, já nascemos faltantes, impotentes, frágeis. Começa aí. E qualquer tentativa de negação da nossa fragilidade ao longo da vida tem o efeito contrário, o de nos tornar ainda mais frágeis e menos humanos. A ideia de que há algo necessariamente errado conosco se não estivermos bem o tempo todo não passa de um delírio coletivo. Pois bem. Quando escrevi, um dia após o meu último aniversário, o texto que pode ser lido aqui, uma pessoa muito próxima me disse, assustada, que não imaginava que eu estivesse tão mal. Bom, eu havia estado, mas no momento em que escrevi, em que pude ler as palavras que constituíam o meu fracasso, eu simplesmente já não estava mais tão mal a ponto de não conseguir brincar. Eu havia acabado de voltar para o play e isso era o melhor que poderia estar acontecendo.

O mesmo acontece agora, quando a realidade despenca sobre as nossas cabeças.

Eu, sigo brincando, sem garantias.

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