quinta-feira, 5 de março de 2020

Onde estão as chaves?

"Infelizmente, faltavam-me as chaves."

Pierre Rey em Uma temporada com Lacan



Mas a vida é um drama, P. me disse certa vez, com alguma ênfase no verbo. Eu já estava fora do divã e pude vê-la enquanto ela pronunciava as palavras, que logo se uniram numa frase à qual de pronto suspendi o sentido. Então a minha vida também podia ter uma pitada de drama? Eu estava autorizada a sofrer? Olhei com espanto para os olhos que haviam acabado de me revelar o real e a voz de veludo azul reverberou em mim. Não era uma piada. O que da minha vida eu acabara de expor naquele divã era mesmo um drama que eu vinha me esforçando, há anos, para negar.

Passei pela porta do consultório quase tropeçando no meu próprio constrangimento. Eu estava sem graça e sem palavras, literalmente caída na real.

A minha vinda ao mundo havia sido também um drama. Horas de um trabalho de parto que culminou num fórceps. Nasci à força e talvez seja por isso que até hoje me rebelo contra qualquer ato forçado.

Durante os meus primeiros anos, eu me reunia quando me contavam as histórias que estavam nos livros coloridos e bonitos que eu manuseava. Quando aprendi a ler, passei a me reintegrar por meus próprios meios. Bastava mergulhar entre as letras e nadar junto das palavras para restituir meu equilíbrio. Quando era obrigada a fechar os livros, ficava flutuando sobre as histórias, metade do corpo dentro delas, a outra metade fora, louca para afundar novamente na fantasia e fugir da realidade (ou o contrário). Fora das páginas, havia todo um universo de coisas e pessoas interessantes, mas nada ou quase ninguém que se comparasse aos livros. Havia também a indiferença do meu pai e a insônia triste da minha mãe, o drama para o qual eu não tinha palavras. Faltavam-me as chaves.

Só não esqueça as chaves. Foi isso que ela disse? E se eu lhe dissesse, hoje, que nunca as esqueci, as chaves das portas do meu desejo? Ela diria que já sabia disso, pois do contrário não teria sido possível girá-las incessantemente como ela vem fazendo desde o início. Ela sempre soube onde estavam as chaves.

Eu também.

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