quinta-feira, 21 de novembro de 2019

The great leap

"... mas afinal é preciso começar a amar, para não adoecer, e é inevitável adoecer, quando, devido à frustração, não se pode amar."

Sigmund Freud em Introdução ao narcisismo (1914)



O que vem a seguir, como vem, é fagulha de conexão. E é dela que se trata.


Lembro da porta do elevador em movimento quando senti a faísca. Y. (uma das surpresas que estavam guardadas dentro da caixa de presentes que a China foi para mim) falava sobre a dificuldade de conexão, de troca entre os profissionais da área dela. Arquiteta, doutora em arquitetura e urbanismo e professora universitária, ela falava com pesar sobre o assunto. Fiquei surpresa e contei a ela o que venho sentindo em relação à minha futura área de atuação no ambiente em que estou inserida e concluímos o óbvio, ou seja, que o isolamento só nos traz perdas, atrasos e pobreza intelectual e espiritual.

Enquanto conversávamos, lembrei e compartilhei com ela algo que ouvi certa vez num retiro de Iyengar Yoga, algo sobre o grupo ser uma espécie de catalisador, e que é exatamente o que eu sinto. Refletindo, depois, sobre o assunto, constatei que eu não poderia sentir de outra forma, já que tive a sorte de, por muito tempo, ter a conexão como regra e não como exceção em minha vida. Felizmente pude, ao longo de toda a minha trajetória escolar, do maternal às universidades, e também por um bom tempo depois do seu encerramento, em outros contextos, ter essa experiência, digamos, eternamente formadora. Sempre houve uma certa coesão, uma aproximação que ia além das salas de aula, algo que faiscava entre alguns de nós. É bom deixar claro que quando falo em grupos, aqui, não estou me referindo aos grupos que atuam sem pensar, que vão no embalo, às famosas massas. Não. Estou falando de abertura, de curiosidade, de troca entre pessoas que, teoricamente, têm interesses comuns. De tocar e de se deixar tocar pelo movimento do outro, de criar, pulsar e até de amar. Porque, se eu não estiver delirando, dar o que se tem é, de alguma forma, amar.

A propósito, é de delírio, também, que se trata a falta de conexão. P. diz que, isolado, o psicanalista corre o risco de delirar, e eu concordo com ela. A propósito, psicanalista ou não, eu, ser humano, quando me sinto isolada, deliro. E aí escrevo para poder me salvar, para dar algum corpo aos meus pensamentos e me tirar do entre, do meio da tristeza e da loucura. Talvez eu esteja sendo excessivamente saudosista e dramática, mas acho que nós todos delirávamos menos. Pensávamos mais e delirávamos menos. Existíamos com mais ênfase. Ou eu o fazia.

Mas eu ainda o faço e por isso sofro por não me conectar, por não trocar, por não festejar. E talvez sofra por não entender os motivos pelos quais outros parecem não desejar e não sofrer como eu. Como disse Y., a questão, na troca, não é mostrar o que se sabe, não é, digamos, pagar de gostosa. Não. Pouca importa quem mostra o quê. Ou melhor, até importa, na medida em que concluímos que o pulo do gato é ouvir quem sabe muito, infinitamente mais do que nós, seja quem for, para podermos aprender mais, para formarmos mais conexões, mais pensamentos, mais movimento. Para darmos saltos ao invés de nos arrastarmos por aí.

Reconhecemos, okay, que somos nerds e ser nerd no Brasil, hoje (vamos falar do hoje), é quase um sacrilégio. É algo pelo qual você definitivamente não é bem visto ou bem quisto. É uma espécie de maldição que paira sobre você e que, assim que é detectada em alguns meios, provoca reações as mais paradoxais. Uma delas é o afastamento. Ao invés de atrair, você afasta pessoas. E não, não é assim em todo lugar. Há lugares onde inteligência, curiosidade e abertura funcionam como uma ímã. O que acontece por aqui? Não sei e desconfio que a resposta não seja simples.

Ao me ouvir certa vez falar sobre a insegurança que eu sentia a respeito das minhas irrefreáveis viagens psicanalíticas (as quais então me pareciam, como sempre me pareceram praticamente todos os meus pensamentos pululantes, o cúmulo da inadequação), P. disse, para meu grande alívio, mas o que é a Psicanálise senão uma grande viagem? Ampliando a questão, podemos então nos perguntar, mas o que é a vida senão, em todos os sentidos, uma grande viagem? Será que precisamos da autorização de alguém para pensar livre e desenfreadamente a respeito de qualquer coisa que nos toque enquanto olhamos pela janela do trem? Será que precisamos temer as fagulhas que do nosso encontro com outras pessoas que estejam viajando conosco possam vir a iluminar nossos pensamentos, fazendo com que nossos corpos e almas brilhem da maneira que melhor lhes aprouver? Será que vai valer a pena, lá no fim, ter feito a viagem sem que tenhamos nos permitido conhecer o máximo possível do que cruzamos pelo caminho?

Faço essas perguntas para mim mesma pois a verdade é que quem escreve escreve para si e não para os outros ou em razão de algum objetivo. Como já escrevi antes e como já disse a algumas pessoas, escrevo para me organizar, para me integrar, pois há momentos, muitos, nos quais me sinto esvanecendo em meio a vapores de pavor. Pavores que me tiram o ar e que me deixam cega e tonta diante da possibilidade de perder o que quer que seja que provoque essa ilusão de controle e a sensação infantil de linearidade que ela engloba. Viver, como repete P., não é fácil.

Y., ao contrário de mim, diz que anda preferindo o caos à organização e é a partir desse caos faiscante que extravasa dela que percebi, num pulo que eu andava ensaiando para dar, o quanto de mim andou meio anestesiado por aí, distraído do principal, abandonado ao longo do caminho de uma viagem tempestuosa na qual embarquei com excesso de descuidado.

Da lama ao caos das mudanças e à sorte dos encontros que brilham, no principal, nos organizamos num pensamento que nos sintetiza e que nos faz querer mais, sempre mais, desse momento efêmero que é a vida, no qual está gravado, ainda que eventualmente com letras apagadas, o fato irremediável de que somos todos pó de estrela.

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