domingo, 28 de janeiro de 2024

A madeleine

Vienne/França
 

Às vezes penso que todas as minhas invenções são subterfúgios para não escrever. Invento isso, aquilo e aquele outro e então fico sem tempo, sem parada, sem energia. O fato é que tenho medo da escrita, da verdade que ela traz à tona, das horas durante as quais ela me mastiga para depois me cuspir.


A madeleine

Recentemente eu viajei. Fiz um intercâmbio, como fazem, em maior número, os adolescentes e os jovens adultos. Passei um mês vivendo sozinha num pequeno apartamento localizado num prédio que abriga residências estudantis, para o qual, confesso, cheguei a pensar em comprar uma planta. Fiquei encantada com Lyon, a cidade que escolhi para passar esse período, com os dois rios que a cortam, e me habituei a diariamente olhar para cima em busca do conforto e da orientação geográfica oferecida pela vista da Basílica de Notre-Dame de Fourvière, que paira sobre a cidade como uma bússola. Dormi e acordei pensando em comida, fotografei inúmeras vitrines de doces e comi, com a boca e com os olhos, as obras de arte açucaradas mas nem tanto que os franceses expõem em suas padarias e confeitarias. Provei em quantidades diárias o mais novo beaujolais nouveau que era acabado de chegar, flanei por livrarias e quase pedi um emprego em uma delas, que expunha os lançamentos acompanhados de bilhetes com uma crítica e uma recomendação da loja, bilhetes escritos à mão. Melhorei o meu Francês e fiz tudo o que mais gosto de fazer: fui ao cinema, ao teatro, a museus, à ópera local, a um espetáculo de circo, saí para beber com colegas de curso, viajei para cidades próximas e observei as pessoas com vagar e com cuidado, o que sempre me permite inventar e contar para mim mesma as histórias das suas vidas. Ouvi novas músicas, percebi o meu corpo impregnado de novos cheiros, andei até os meus pés quase não suportarem mais, me deliciei com a maciez das lãs que envolviam o meu pescoço, comprei um casaco novo e também novos livros. Proferi a expressão “c’est très mignon” umas duas centenas de vezes e passei dias felizes, com poucas noites de insônia, mergulhada numa cultura que me abraçava com o mesmo calor produzido pela degustação de uma madeleine acompanhada de uma xícara de chá. Na véspera da partida, em meio ao frio cortante e a uma chuva de gotas largas que insistia em cair das nuvens que acinzentavam o céu, andei pela cidade como quem está prestes a deixar uma pessoa muito querida. E de fato eu estava na iminência de abandonar não só uma cidade que havia se encaixado em mim como uma roupa feita sob medida, macia e muito confortável, mas também as pessoas desconhecidas que ali viviam e que eu tanto gostava de observar e aquelas que em tão pouco tempo passaram a fazer parte do meu cotidiano, como a adorável dona da lavandaria na qual eu lavava as minhas roupas e a do restaurante vietnamita que havia se tornado o meu preferido. Até agora sinto a estranheza daquela véspera, da tarde que passei com novos amigos num café trocando impressões e histórias tristes e outras engraçadas, até que uma das pessoas precisou ir e se despediu quase como se fôssemos nos ver amanhã no mesmo lugar. E então de três restaram dois e seguimos com o nosso falatório até o cinza do céu virar grafite e nós nos virarmos um para o outro em pé na calçada do lado de fora do café para nos despedirmos com uma dupla de abraço e beijo calorosos que eu não esperava, não eu, que já fazia tão parte daquilo tudo e para quem uma despedida de braços quentes e olhos úmidos não fazia o menor sentido. Foi somente no dia seguinte, quando o meu olhar se chocou, na saída do metrô, contra a placa indicativa do caminho para a parada do trem que me levaria ao aeroporto, que o sem sentido se abateu sobre a minha cabeça como realidade cheia de conteúdo lógico. Caiu como uma pedra que vem rolando lá de cima e provoca dor daquelas que fazem a gente ter vontade de chorar de aflição.


Uma mulher incomoda muita gente; uma mulher sozinha incomoda muito mais

Antes de viajar, e eu viajei quase que imediatamente após o meu aniversário de quarenta e cinco anos, o que foi um erro, pois agora percebo que deveria ter ido antes, fiquei intrigada com a quantidade de votos de suposta felicidade recebidos cujo teor era basicamente o mesmo, espero que você encontre um francês por lá! O frisson com essa fantasia era tamanho que até o novo marido de uma amiga, o qual me viu não mais que duas vezes na vida, enviou os seus votos casamenteiros ou coisa que o valha por meio da esposa, a mesma que ao longo da viagem, que ela acompanhava virtualmente, ficou horrorizada com a quantidade de doces que eu ingeria diariamente, ela, que tanto preza pela magreza e abomina a gordura, especialmente quando alojada numa mulher, pois que homem vai querer uma mulher gorda, e pouco importava se a comida era parte indissociável daquela cultura, se era gostosa a não mais poder, se boa parte do prazer e do aprendizado relacionados àquela viagem estavam necessariamente ligados ao ato de comer, o importante mesmo é se manter bonita dentro dos padrões, fundamental é ser convencional, é ser magra e ter um homem, e eu fui e voltei sem nenhum.

Que pena que você não achou um francês bem rico por lá, rezei tanto para você voltar casada com um homem rico, tem muitos franceses por lá, são bonitos os franceses, não conheceu nenhum, ah, que pena, sério, mas nenhum mesmo, e o assunto viagem, a despeito de todo o resto, a despeito da própria viagem, cessava aí, com a minha incapacidade de ter encontrado, como se fosse um canivete cheio de utilidades que se acha ou não disponível numa loja, um homem que me salvasse, que me acompanhasse, que eventualmente viesse a pagar as minhas contas e viagens e cursos e livros e as sessões de análise e o plano de saúde e os médicos particulares e o veterinário e o IPVA do meu carro que é o que sobra pois que o carro em si foi integralmente pago com o meu próprio dinheiro sem que houvesse qualquer homem envolvido além do vendedor da concessionária com o qual sigo em débito por não ter ainda preenchido a pesquisa de satisfação com nota dez que é algo que segundo ele lhe será muito útil, enfim, um homem que viesse a me dar coisas que eu não sei quais são mas que as pessoas que me desejam tanto um homem canivete obviamente devem saber e que provavelmente são apenas o acessório da fantasia principal, aquela de que uma mulher precisa de um homem para ser completa, válida, para ser uma mulher de verdade e se fosse simples assim, meu deus, se fosse simples assim a completude que é uma coisa que não existe para ninguém nem mesmo para os homens imaginariamente completos que saem por aí estufando o peito e exibindo um pau, e para eles ninguém deseja ou pergunta se encontraram uma mulher para casarem e serem felizes pelo resto da vida quando viajam.

Pensando sobre o assunto eu várias vezes me perguntei se não passou pela cabeça de ninguém que eu estaria sozinha num país distante e que por mais que os homens na França sejam menos machistas e sexistas do que os homens no Brasil, eles ainda assim são machistas e sexistas e por origem das coisas misóginos e que eventualmente me aventurar com um estranho qualquer poderia incorrer em riscos desnecessários ou em situações desagradáveis que poderiam melar todo aquele delicioso caldo no qual eu estava me refestelando, eu e a minha solitude, eu e a minha paz, mas é claro que não, pois como uma mulher sozinha pode ter paz e prazer, só posso estar mentindo mas não estou, eu só estou cansada, tão cansada de tanto pensamento flácido e bobo e pueril que demorei a escrever, que me irritei com vagar, que tive uma coisa crescendo no peito e subindo pela garganta que só falei para a analista e para o outro médico, o que às vezes me faz sentir criança e chorar como se fossa outra e não eu a verter lágrimas que ele arranca de mim com alguma frase certeira naquele consultório que ao longo de quarenta anos ocupou várias salas mas que segue sendo o mesmo, a mesma pequena estatueta de uma santa sobre a mesa, a mesma caneta Montblanc, as mesmas folhas de papel pautado onde ele anota todas as palavras que formam o livro no qual vem se transformando o meu prontuário, falei mas não deixei, até agora, que a coisa descesse até os dedos, e quando desce é um alívio, é um complemento, é um vazio preenchido de palavras contornadas que podem ser vistas e lidas e relidas e pensadas no mesmo ritmo em que foram nascendo.

E durante uma conversa uma amiga observou que eu provavelmente estou sozinha em razão dos meus posicionamentos femininos e eu tenho certeza que ela trocou feministas por femininos e então na hora eu não disse nada, só fiquei ali me deliciando com a troca de palavras, com o ato falho, pois a psicanálise, como recentemente constatou a minha analista, não sai de mim, nem tampouco a escrita, não consigo me livrar nem de uma nem de outra, não quero me livrar, e achei curioso e muito bom isso do meu dito posicionamento feminista ser inconscientemente reconhecido como um posicionamento feminino pois que o meu posicionamento feminista é só o desejo expresso em atos e palavras de ser reconhecida como um ser humano e que se foda o sexo, o gênero, só quero ser humana que é o que sou antes de ser qualquer outra coisa e eu não fico o tempo todo pensando ah, eu sou uma mulher então tal coisa, ah, eu sou uma mulher então tal outra coisa, eu sou uma mulher então eu preciso de um homem, eu sou uma mulher então eu preciso viver assim ou assado, eu sou uma mulher então eu não posso fazer isso ou aquilo, eu sou uma mulher, eu sou uma mulher, eu sou uma mulher, não, o tempo todo eu penso eu preciso fazer porque eu vou morrer, eu preciso viajar porque eu vou morrer, eu preciso escrever porque eu vou morrer, eu preciso viver porque eu vou morrer, sendo eu um sujeito quase indeterminado, sendo eu essa coisa que jorra palavras que vêm sabe-se lá de onde e que não tem tempo nem nome nem sexo nem gênero nem nada que seja classificável ou nominável, só eu.

Eu continuo pensando muito na morte e o outro médico então me diz você pensa tanto na morte que aí você não vive e é verdade eu andei pensando muito na morte e deixei de viver por estar meio morta mas agora a morte tomou um outro nome que é o luto e que inclusive parece estar em alta e numa sequência eu li memória de ninguém que é um luto só e assisti anatomia de uma queda que é outro luto que obviamente se instaura de fato quando o processo tem fim, o processo, essa nódoa jurisdicional que foi inventada talvez por aqueles que tinham o desejo mas não o talento literário para contar histórias, e agora estou em meio ao desenrolar de não fossem as sílabas do sábado, no qual me vejo mergulhada no luto daquela mulher e daquelas mulheres e o andré em alguns momentos é quase como se fora meu o marido que morreu e eu vou ficando mais dentro e dentro e dentro de mim e o luto da ana é como se fossem os meus e então eu preciso acabar logo com isso e sair desse lugar que me consome, deprime e me deixa estatelada olhando para a luz do abajur refletida no teto.

Ana está ressentida com a sua perda, em anatomia de uma queda pergunta-se à protagonista se ela se ressentiu com o marido por ocasião do acidente com o seu filho. Eu dizendo que não, que um homem não poderia compor a mesa naquela situação, e de repente ouço precisamos ter cuidado para não nos tornarmos mulheres ressentidas, e depois dessa frase, dita no mais improvável dos contextos, para além da perplexidade que me tomou, pensei no quão curioso era o fato de que há muito tempo penso em escrever um texto justamente intitulado os ressentidos, uma homenagem às avessas a todos os homens trasbordantes de ressentimento que passaram pela minha vida e que não foram poucos e pela de muitas mulheres que eu conheço e de outras que desconheço mas cujas histórias estão aí, nos livros, nos filmes, nas revistas, nas matérias de jornais, nas histórias que ouvimos alguém contar. Ressentidos que ao longo dos séculos vêm tentando nos manter belas, mudas, cegas, burras, recatadas e do lar e em relação aos quais, na opinião de algumas mulheres, nós precisamos ter cuidado para não nos tornarmos ressentidas. E aqui eu retomo o meu posicionamento feminista apenas para afirmar que se o desejo de que nós mulheres tenhamos voz, dignidade, autonomia e liberdade na mesma medida dos homens fizer de mim uma mulher ressentida, eu estou completamente tomada de ressentimento e penso que a frase, especialmente no contexto em que foi dita, deveria ter sido outra, precisamos tomar cuidado para não nos transformarmos em mulheres mortas, literal ou metaforicamente, por todos aqueles que não querem ouvir as nossas vozes.

---

Escrever é muito perigoso, eu sei, e essa frase não é minha, é da Olga Tokarczuk, mas ao mesmo tempo que amedronta, acolhe, como a madeleine com chá, como o brinquedo preferido de uma criança, como Lyon ou outra cidade que possa ser narrada dentro de uma história, seja ela inventada ou não, como esta tarde de domingo, que me foi inspirada também pelas sílabas de um sábado.

terça-feira, 5 de setembro de 2023

Kinder Ovo

Funciona assim: algo se abate sobre o corpo, pois é nele que tudo acontece. Cabeça também é corpo. Tontura. Taquicardia. Arritmia. Falta de ar. Falta de concentração. Ânsia de vômito. Diarreia. O corpo quer girar, desequilibrar, acelerar, parar, desconectar, expelir. Quer falar e quer calar. Quer correr e quer ficar. O corpo não tem parada, não sabe o que quer. Olha para o outro corpo que está deitado ao seu lado e não consegue se fixar nos sons que saem da boca que nele se movimenta. Entre os corpos se instalou um anteparo visível apenas para um deles. O corpo que fala não sabe o que acontece com o outro que, em silêncio, faz a pergunta, e se ele soubesse?



É muita vida acontecendo, um amigo me diz, e eu dou uma remexida na cadeira. Sim, é muita vida acontecendo quando eu mal saí de um período de muita morte. Tanta morte que eu poderia parafrasear a Milly Lacombe, que escreveu O ano em que morri em Nova York, que a propósito li assim que voltei do hospital em 2021, e escrever um livro intitulado 2023, o ano em que definitivamente morri em S. Definitivamente pois a minha foi uma morte gradual, que teve início alguns anos antes de 2023 e que, não fosse a brutalidade imposta pelos acontecimentos finais, poderia ter até passado desapercebida.

S., hoje eu entendo, é como um Kinder Ovo: parece boa por fora mas, por dentro, carrega surpresas desagradáveis, com cores e formas especiais reservadas a quem lhe é estrangeira.



Sempre achei bonito o dia do meu aniversário, primeiro de novembro, que é o Dia de Todos os Santos. Acho bonito por achar, pela sonoridade, por um quê de vida que parece se contrapor à morte que é lembrada no dia seguinte, dois de novembro, Dia de Finados.


De todas as belíssimas igrejas existentes em Florença, a que mais gosto, a que eu visitaria com frequência se morasse na cidade só pelo prazer de sentir a vibração do lugar, é a Igreja de Ognissanti, ou seja, a de Todos os Santos, na qual venho pensando repetidamente, desejando escrever sobre ela. Foi assim, aliás, que comecei a escrever, usando o pretexto de falar sobre viagens. Digo pretexto pois hoje acredito que a escrita era sobre outra coisa. É possível que fosse sobre a vida.



Quando muita vida acontece, especialmente a uma certa altura da existência (como me fez notar o amigo do parágrafo lá de cima), tudo pode acontecer, na realidade ou somente na fantasia. O recalcado pode voltar, a angústia e o medo podem se intensificar, referências podem virar vapor e, principalmente, pode ficar difícil manter a ilusão de controle. A vida, disse Guimarães Rosa para o mundo e disseram a minha mãe e o meu médico homeopata para mim recentemente, demanda coragem. Eu ouço e fico pensando nas pessoas corajosas, como uma amiga, minha chefe, que outro dia, ao me ouvir falar sobre um dilema, sobre uma situação que envolvia um risco, simplesmente me disse, mas no fim das contas essa é justamente a graça da coisa, o risco. Boquiaberta, olhei para ela com admiração e respeito, da mesma forma que uma criança olharia para um adulto. Nunca passaria pelo meu narcisismo infantil, que quer se agarrar a todas as seguranças possíveis, ao paraíso da placidez e da estabilidade, a ideia de que a graça da coisa esteja no risco que ela apresenta.

No entanto, contraditoriamente, vivo me atirando em situações que demandam uma certa aposta. Vivo, ainda que eventualmente aos tropeços, tentando dar um corpo, uma voz, uma expressão, uma letra para o que eu sou. Escarafunchando em busca do desejo. Do meu desejo de não morrer nas palavras, de engolir a vida que há lá fora e de atirá-la de volta para o mundo, ainda que seja em forma de piada, pois é provável que o meu maior desejo, ao fim e ao cabo, seja mesmo o de me divertir, fazer aquilo que certa vez ouvi um desconhecido gritar para a amiga com a qual ele fazia dupla numa parede de escalada: Raquel, não esquece de se divertir! Talvez por isso eu ache tão tediosamente fascinante um certo tipo de seriedade que cabe dentro de um quadrado. Sempre que leio essas apresentações de caráter profissional que hoje parecem ser uma tendência nas redes sociais fico me perguntando como é estar na pele de alguém tão perfeito, tão reto, tão socialmente adaptado. Passei também a imaginar a minha apresentação e concluí que seria mais ou menos assim:

Olá, sou a Camila Guido, uma ateia que visita igrejas e consulta regularmente uma cartomante. Tenho 44 anos e muito em breve completarei 45, quando espero resolver de uma vez por todas, para o bem ou para o mal, a minha atual crise da meia-idade. Minhas amigas e meus amigos me identificam como uma pessoa calma e razoável, chegando a pronunciar em voz alta tais palavras, o que, com pesar, sou obrigada a desmentir, afirmando que não passo de alguém bastante dodói da cabeça, cujos pensamentos excessivos me colocam eternamente à beira de um abismo no qual acredito piamente poder despencar a qualquer momento, que é o da loucura. Sou dada a excessos de outras naturezas também, como aqueles que dizem respeito ao corpo, e tenho um senso de humor por vezes demasiado ácido e eventualmente ofensivo (embora a ofensa, como salvo engano já disseram por aí em algum texto sagrado, esteja nos ouvidos de quem ouve). Até o advento da pandemia o meu maior hobby era frequentar salas de cinema, nas quais sempre abominei a presença de pipoca ou de qualquer outra fonte de barulho que não estivesse diretamente relacionada ao filme. Acabo de vender minha casa e meus bens mais preciosos atualmente são minha escrivaninha, minha estante de livros e, claro, os próprios livros. Minha família se resume a dois cachorros e a uma mãe, todos extraordinários e que muito provavelmente são a melhor parte de mim. Tenho uma relação doentia com os cães, os quais assedio com constantes beijos e abraços e dos quais sinto saudades extremas após poucas horas fora de casa. Anos de terapia e de análise me fizeram desistir de manter o mesmo tipo de relação com a minha mãe. No entanto, sigo telefonando para ela durante as madrugadas, quando as crises de ansiedade se tornam insuportáveis. Ultimamente tenho ouvido no repeat Lugar Nenhum, dos Titãs, já que, apesar de duas nacionalidades, família (ainda que diminuta), amigos (felizmente em maior número) e de um trabalho estável, letra e música são o resumo preciso da energia que anda circulando em mim. No momento o meu desejo mais profundo é morar num quarto de hotel, onde tudo seja magicamente resolvido pelos adultos responsáveis pela administração do estabelecimento, incluídas no pacote as questões atinentes ao funcionamento prático da minha vida. Estou solteira e tentando não desistir do amor, conforme sugestão que me foi dada por um amigo (de novo aquele) a título de desfecho para uma conversa super alto astral sobre o tema.



O que você achou? Talvez um pouco pueril, não? São fragmentos, como você deve ter notado, como venho fazendo ultimamente. Sem muito controle, com diversão. Chego a sorrir, até a rir enquanto escrevo, sabia? É das coisas mais divertidas que existem. E não é nada seguro.

À meia-luz, a voz dela me estabiliza no divã: e o pulso ainda pulsa.

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Esquadros

Um quarto em Pequim. As janelas, uma parede de vidro. Contrariando as expectativas eu dormia, mas despertava voluntariamente às cinco horas da manhã, a luz explodindo pelas frestas da cortina, toda uma cidade silenciosa lá embaixo. Trigésimo, quadragésimo, quase quinquagésimo andar. Em Pequim, para minha surpresa, havia mais silêncio do que em São Paulo, tanto no alto de um edifício como com os pés plantados nas ruas. Eu me via dentro de um filme, lost in translation, descoberta, aberta a todo o estranhamento que advinha daquele mundo novo tão velho. As palavras, ali, não tinham serventia. Eu tentava escrevê-las, mas elas não saíam. Estavam ocupadas demais assistindo ao desdobrar da estranha que se desenrolava em mim. Quem era aquela que não fazia a menor questão de controlar nada, que sorria maravilhada para as espirais de sons e de sinais ininteligíveis que a envolviam, emitidas por olhos e bocas e megafones que se espalhavam por todos os cantos, menos ali, dentro daquele quarto, onde a solidão e as janelas que não podiam ser abertas por vezes a sufocavam? Talvez a estranha fosse a própria solidão, a marca inicial, o umbigo do sonho. O indizível, que cava em busca das palavras, que as desenterra, como fizeram os chineses com os bonecos, os guerreiros de Xian.



Os poucos metros quadrados cujas paredes eram revestidas de azulejos portugueses, um espaço que era também uma passagem. Uma senhora sentada sozinha num dos cantos do quadrado, tricotando. Assim que a vi, pensei na minha avó.

Mais tarde, na mesma vila de Óbidos - que apesar da beleza me fazia pensar em mortos -, vi uma névoa espessa e branca como os muros medievais que um dia protegeram o vilarejo tomá-lo de assalto, tornando o seu interior úmido e indistinto. A luz amarela que de maneira uniforme tingia toda a extensão da entrada do restaurante do hotel, fazendo dele um farol, era a única a aquecer um pouco os arredores. De resto, nem o vinho, nem a camiseta que eu havia levado na mala e que guardava o cheiro do homem pelo qual eu havia me apaixonado poucas semanas antes de viajar, eram capazes de dispersar a solidão que, simultânea à névoa, havia me tomado.



Ele vestia uma camisa azul que apesar do seu corpo magro e delgado deixava entrever partes da pele do peito. A camisa, pequena, justa demais, havia sido uma escolha ruim. Será que aquele era um tecido elástico? Qual seria a textura dele? A depender dos seus movimentos, uma fresta se abria ao longo da linha vertical entre um botão e outro, bem na altura do coração. Aquilo me causava um incômodo, um constrangimento. Eu olhava a abertura e me forçava a desviar o olhar, a não me demorar ali. Imediatamente, contudo, os meus olhos eram novamente sugados para aquele ponto. À medida que ele se movimentava, que ele falava, a fresta se abria e se fechava, deixando mais ou menos à mostra uma nesga de pele pela qual eu não conseguia me decidir a sentir repulsa ou atração. Uma escolha ruim, eu repetia para mim mesma.



Um corpo bateu contra o chão, vindo do céu, do paraíso ou do inferno nos quais pode se transformar um quarto de hotel. Da mesa onde eu estava, através do vidro, eu o vi passar. Cair. O corpo de um homem, magro, barba e roupas brancas. O homem com quem eu me encontraria mais tarde naquele mesmo dia, numa outra cidade de um outro país, havia me contado que, certa vez, caminhando pelas ruas da Antuérpia, topou com um dedo humano jazendo no chão. Logo após a queda, o corpo não se moveu. Ficou ali, descontextualizado, jazendo entre as mesas vazias do pátio do hotel. De repente, sem me dar conta, passei a atuar num filme do qual era também espectadora. Abandonei a mesa de café da manhã e me movi na direção das escadas e do elevador, topando, aqui e ali, com outros hóspedes que faziam o mesmo. No quarto, ao qual cheguei num corte de cena, alcancei a minha mochila e a escova de dentes que ainda estava sobre a pia do banheiro e saí atravessando as escadas, a recepção e a praça que dava acesso ao famoso zoológico da cidade e à estação de trem que, naquela época, salvo engano, era tida como a mais bonita da Europa ou até do mundo. Ali, esperando pelo trem, fiquei entre Hitchcock e Buñuel.



Num quarto de hotel em Berlim, um homem e uma mulher estão estendidos sobre a cama, enlaçados. Por muito mais do que seis minutos, nós fomos intensamente felizes. Todas as músicas, todos os shows, todas as cidades. O mundo seria nosso. Havíamos invertido a ordem das coisas e primeiro tomado Berlim. Faltava Manhattan, cujo cerco era só uma questão de tempo.

O tempo. A eternidade passada num quarto de hotel.



Florença vista da estrada, de cima de uma bicicleta, numa manhã de julho. Assustei quando a vi. Depois chorei.

Florença vista do alto da colina da Igreja de San Miniato al Monte no fim de uma tarde de novembro. A luz do dia se transformando em escuridão da noite, exceto pelas infinitas luzes que se acenderam na cidade. Uma joia cintilante, enfeitando as duas margens de um rio. Mais uma vez, chorei.

Roma, o interior da cúpula do Pantheon. Ainda que eu cave e desenterre palavras em número similar ao das estrelas, jamais encontrarei uma forma adequada de dizer. Como a angústia, a beleza em estado puro é da ordem do indizível. Chorei.

A Itália nunca é demais, e é também o melhor lugar do mundo para chorar.



Um domingo de ramos em Buenos Aires. As pessoas nos arredores das igrejas levavam consigo ramos nas mãos. Eu me dei conta da data e pensei no meu avô. Domingos. Então eu pensei, que nome lindo o do meu avô. Dizem que o pai dele, Genaro, era um homem bom. Veio da Itália num navio, saído, ouso imaginar, do Porto de Nápoles. Muito católico. Teve o seu nome, que é também o meu, cambiado. Guida por Guido, o preço a pagar pelo sonho ou pela necessidade de começar uma vida nova num país novo. Achei tão bonitos os ramos, tão singelos, fiquei encantada. Eu era muito jovem, vinte e dois, vinte e três anos, e não tirei fotografia alguma daquela viagem. Somente a vivi e penso que poderia reconstitui-la textualmente, apesar dos muitos anos que me separam dela, com bastante exatidão. Já naquela época, andando sozinha pelo mundo, eu via tudo enquadrado na folha de um papel, nos ramos de um domingo.




P.S.: O título deste texto é propositadamente o mesmo da canção de Adriana Calcanhoto. O texto faz referência ainda a canções de Otto, 6 Minutos, e de Leonard Cohen, First We Take Manhattan.

domingo, 9 de julho de 2023

Isso também é viver

Há livros que nos atravessam como estacas que se fincam forte no peito. Numa madrugada recente, um desses livros, A chave de casa, de Tatiana Salem Levy, fez meu peito esquentar e arder de aflição enquanto o meu estômago dava voltas ao redor de si e o restante do meu sistema digestivo se desarranjava, assim como o meu sono.

De novo não, eu pensava, de novo não. Eu pensava em outras noites de aflição semelhante. Eu pensava descontroladamente na morte, na minha, na da minha mãe, na falta de ar que eu temia sentir, na casa que eu não sabia querer ou não querer mais, na cidade que eu não sabia querer ou não querer mais, na vida que eu não sabia querer ou não querer mais, na angústia que eu sabia não querer mais. Eu pensava no casal que transava em um dos quartos de um imenso e belíssimo prédio situado numa praça de Florença, aquela próxima ao mercado, cujo entorno é enfeitado por cobiçados itens de couro feitos à mão. Os dois jovens mal disfarçavam o ato enquanto olhavam pela janela, ora ambos, ora somente ela, a vida que pulsava lá embaixo, a vida que os fazia pulsar com ainda mais intensidade diante daquela janela aberta para um mundo inteiro de vozes e de olhares, de texturas e de cores, de palavras pronunciadas em muitas línguas. Eu pensava na cena e tentava adivinhar qual era o sabor do sorvete que eu levava aos lábios enquanto os observava, encantada com a ideia que haviam tido. Eu pensava em mim, no jogo que um dia, fazendo parte de um casal, havíamos estabelecido entre nós, a contagem das cidades nas quais havíamos transado. Quantas, quais? Era o melhor jogo do mundo, o que mais me aprazia. E contudo, acabou, como acaba tudo. Eu não quero que acabe, eu pensava, e pensava nas noites que viriam, num outro idioma, numa outra cama, num outro quarto, sem o peso do corpo da Amora junto ao meu, sem o ressonar do Sig ao meu lado. Como serão as noites, se forem como esta? Como vou suportar, sozinha, tamanha angústia, eu pensava.

Eu pensava, mas isso somente depois, que angústia é uma palavra vazia, diferente do medo, que é cheia do medo de algo. Angústia é nada e ao mesmo tempo é uma palavra toda que se espalha pelo corpo, que desenha linhas espiraladas ao redor do peito, dos olhos, dos maxilares, das têmporas. Angústia, eu pensava, é um nada que envolve tudo e que faz o corpo arder de calor e de horror diante do vazio.

Eu pensava no sexo. Pensava na janela que nós abríamos nas madrugadas, uma fenda no espaço, o tempo em suspensão. Você pensava que nós tínhamos todo o tempo do mundo, você dizia que nós tínhamos todo o tempo do mundo, mas era mentira. Ninguém tem todo o tempo do mundo. Nós vamos todos morrer, talvez hoje, talvez amanhã. Será que você não pensava nisso? Você pensava que sabia tudo sobre o sexo, que uma mulher, mais velha, havia ensinado tudo para você. Você dizia, essa tatuagem foi um presente, esse quadro foi um presente, e eu pensava em você como um gigolô, essa palavra que, como todo clichê, soa engraçada e triste. Certa vez você me disse que houve um vazamento de água no seu apartamento e que, mesmo avisado e sabendo que os seus cachorros estavam lá, você esperou a balada terminar para voltar para casa. Quando chegou, havia muita água e os animais estavam assustados. Nós, humanos, somos como os peixes, morremos pela boca. Assim como a chave do sonho está no seu detalhe mais ínfimo, as chaves de uma pessoa estão nas palavras escapadas, nas confissões que não se sabem confissões. Eu pensava, agora, que o mais importante sobre o sexo você nunca soube.

Eu pensava que, mais jovem, eu nunca pensava em nada disso. Eu não pensava, só sentia. Sentia a náusea da existência de quando em quando, de bar em bar. Deparava com ela estampada nas páginas escritas por Sartre, no canto superior direito de uma página preenchida com o pensamento de Wittgenstein num livro cujo nome era azul, num romance de Simone de Beauvoir onde a morte, ela novamente, aparecia como a convidada. Você faz muitas citações, assim fica mais difícil as pessoas entenderem o que você escreve. Será? Pois se as citações são parte de mim. É com os livros que eu converso de verdade, e com os filmes. Escrever talvez seja uma forma de exibir uma pretensa cultura, já me foi dito também. Pois se me mostrar, ocupar o meu espaço, sempre foi o mais difícil. Falar, escrever, ter voz. E se eu não souber ser de outra forma, se eu só puder ser assim, extravasada das vozes dos outros que me fizeram companhia, que me ajudaram a transformar, aqui e ali, o balde de água turva da angústia na cartola do mágico, da qual eu posso tirar palavras para brincar, para preencher, com algo que não seja nada, o caminho entre o viver e o morrer? Como eu gosto de dizer, mesmo sem saber se essa frase é minha ou a quem ela pertence, cada um dá o jeito que pode com o que tem. Aliás, será que as frases, depois de soltas por aí, pertencem a alguém?

Quando eu era mais jovem e me via, na véspera de uma viagem, ou às vezes poucas horas antes do voo, fazendo a mala, eu não pensava nas noites que teria pela frente, em como elas seriam. Eu pensava somente nos dias e, apesar de dizer que sim, não sentia medo. Você não tem medo de viajar sozinha para outro país? Eu respondia que sim, mas no fundo não. Bastava fechar a porta do táxi que me levaria ao aeroporto e tudo estava resolvido, a viagem, outra das mágicas disponíveis dentro da cartola, estava começando e isso era tudo o que importava naquele momento. O que importava era o momento. Não havia celular como o conhecemos hoje, smartphone. O momento, que não podia ser compartilhado, era, por si só, delicioso, glorioso até. Eu pensava, sem conseguir mais ficar deitada na minha cama, mas ainda insistindo em permanecer ali, eu pensava, olhando para o teto, na penumbra, que o mundo atual, o mundo onde o momento não existe mais, onde o momento passa diante da tela de um celular, é o mundo mais triste e odioso do mundo, um mundo no qual se compartilha nada com ninguém, no qual selfies e stories parecem ser uma tentativa desesperada de afirmarmos, para nós mesmos, que existimos, que a nossa vida, por mais ordinária que seja, tem algum propósito, que não estamos tão sozinhos assim. As redes sociais são as igrejas do nosso mundo derretido, volátil, envolto num vapor barato. Eu pensava, então, que o melhor seria rezar. Eu rezava e nada acontecia, a angústia não passava, ninguém me ouvia, ninguém respondia, o peito ardia cada vez mais. Eu andava pela casa e pensava nas noites de insônia da minha mãe, nas noites em que ela perambulava pela casa na minha infância e adolescência. Será que se eu deitar no sofá passa? A minha mãe fazia isso às vezes. Mãe, você está acordada? Eu andava pela casa e pensava que eu precisava parar de pensar. Como será, um mês, um mês sozinha, longe de toda a rotina da qual eu reclamo mas que me serve de anteparo de mim mesma? E se eu enlouquecer e não houver ninguém lá para dizer o meu nome, para me lembrar de mim? E se eu me abandonar para sempre? Mas essa não é a primeira vez que você viaja sozinha por um mês, eu pensava. Não é, mas é a primeira vez depois da pandemia, e isso deve ter algum significado. Antes da pandemia eu não havia sido apresentada ao véu da ansiedade. Antes da pandemia eu não havia ficado duplamente imobilizada pela ameaça de um vírus e por três parafusos que precisavam se fixar à minha carne antes de eu poder voltar a colocar os dois pés no chão. Eu pensava, eu venho pensando muito sobre isso, na ferida ainda não cicatrizada que a pandemia deixou em mim. Ninguém mais fala sobre elas, sobre a pandemia, sobre as marcas, as feridas, ninguém mais quer saber disso. O problema é que isso volta, a todo instante, volta, eu pensava. Será que vai voltar quando eu não estiver aqui? Talvez o melhor fosse mesmo me render a um remédio, a algo que coloque uma tampa nesse buraco. O telefone então tocou, como uma panela de pressão que explode, filha, aconteceu alguma coisa? Não, mãe, não aconteceu nada. É só que eu estou com insônia, estou ardendo, estou ansiosa, estou angustiada. Filha, você está viva, é só isso. Isso também é viver.

Sorocaba, 8 e 9 de julho de 2023.

domingo, 25 de junho de 2023

Titane

Jacques Hold é um homem que chora diante de uma janela. Marguerite Duras o criou assim.

Ouvi, se você fosse um homem, essa situação teria sido rapidamente resolvida, na porrada, pois é assim que os homens resolvem as coisas. É?

Porrada é um substantivo feminino; palavra, lei, simbolização, castração e escolha também o são. A diferença então está no verbo?

Escolhi assistir a um filme chamado Titane. Gosto do nome, gosto do gosto de dizer as palavras na língua do filme. Mas dele inicialmente não gostei. Desgostei tanto do incômodo que ele me causou que falei dele para você com desprezo, com horror. E depois falei de novo, ressentida de mim mesma, da minha negação. Titane é sobre precisar desesperadamente ser amado, só que é sobre isso de uma forma bruta. Ele é brutal e ao mesmo tempo frágil, tão escancaradamente grotesco na sua sensibilidade rosa néon. Cores e sons que não se coadunam com cenas que, se existissem no mundo real, aconteceriam num outro cenário. Titane é uma luta, seus protagonistas lutam por algo que mal parecem perceber. Desejam sem saber o quê. Lutam dentro da banalidade da vida, pela vida, que no fim é vencida por ela mesma. Titane, titã.

De novo voltei a pensar muito na morte. Vou manter esse pleonasmo pois gostei dele. Vou repeti-lo, inclusive, agora com uma vírgula: de novo, voltei a pensar muito na morte. Ouvi a Mariana Salomão Carrara dizer numa entrevista que ela também pensa muito na morte, que a ela soa como um descalabro. Descalabro. Nunca alguém expressou tão bem o que é a morte. São maravilhosas as escritoras, não são? Encontram palavras até para a morte. Eu tenho acordado de madrugada e pensado, será que na hora da minha morte estarei cansada da vida a ponto de querer morrer? Será que é assim que acontece? Estou assumindo que morrerei muito velha, mas muito mesmo, pois sou incapaz de aceitar qualquer outra possibilidade. Então, o que você tem a dizer sobre isso, você acha que no momento dessa morte velha o que a gente mais quer é morrer? Eu acho que não. Estou certa de que na hora da minha morte vou ficar puta, puta inclusive por não ter mais a possibilidade de desejar ser uma puta. Aquele comentário entre Lol V. Stein e Jacques Hold sobre Tatiana Karl, sobre a puta que ela é, a propósito, é o exemplo perfeito de cena literária que desenha a cumplicidade entre dois personagens. Eu a li hoje, enquanto almoçava, eu, o gato sem rabo sentado no meio do restaurante, assustada ao ser interpelada pela garçonete com uma pergunta que me pareceu absolutamente descabida naquele momento, a ponto de eu mal compreendê-la, você quer mais alguma coisa? O que mais eu poderia querer, eu poderia ter respondido, com o meu deslumbramento, mas não, disse somente, com os olhos, não, obrigada. Como são maravilhosas as escritoras que nos induzem a agir com a mesma loucura das suas personagens, você não acha?

Uma mulher que trabalha num restaurante no qual almoço com frequência me disse que olhar para mim, com o meu livro, a faz sentir calma. Achei divertido e confessei a ela que, caso ela estivesse me vendo por dentro, teria outra sensação. É isso o que lhe parece quando eu falo com você, que eu sou um amontoado de coisas desconexas e apressadas? A mim, é.

Tentando conectar as pontas dos fios das histórias que ouço desde sempre, perguntei para a minha mãe, mas por que você vive dizendo que cresceu nos corredores do Hospital Matarazzo? Ela então me contou que era para lá que a minha avó era levada pelo meu avô nas inúmeras vezes, madrugadas, em que apresentava crises de pânico, ocasiões nas quais minha mãe e meu tio iam junto. Lá, A., o grande amigo do meu avô, cuidava dela. A. morava no hospital desde a época da faculdade. Muito pobre, não tinha dinheiro para viver em outro lugar durante os seus estudos, de maneira que o hospital permitiu que ele se alojasse em um quartinho que ficava no porão. Ao terminar a faculdade de Medicina, tendo adquirido tuberculose em razão das condições nas quais vivia, prometeu que, caso se curasse, jamais cobraria por uma cirurgia. E assim foi feito, até o fim da sua vida. Considerado um dos melhores cirurgiões da sua área, nunca cobrou pela realização de uma cirurgia, fosse quem fosse o paciente, pobre ou milionário. Ele, que depois também cursou a faculdade de Direito e entrou para a vida política (não sei se necessariamente nessa ordem), jamais deixou a Medicina e sempre teve o seu quarto no Hospital Matarazzo. Mas, para além dos feitos interdisciplinares do nosso personagem (o dinamismo é algo que me encanta nas pessoas que são muitas, ou seja, que não se identificam com ou se interessam por apenas uma coisa), há uma história dentro da história de A. que insiste em voltar a minha mente. Uma história, aliás, de (des)amor.

A., um rapaz paupérrimo do interior, apaixonou-se por uma moça rica de sua cidade, e ela por ele. Contudo, dadas as circunstâncias econômicas dele à época do surgimento da paixão, ambos não ficaram juntos. Findos os estudos de Medicina, A., agora um médico, reencontrou a moça que, por sua vez, estava noiva de um forasteiro surgido sabe-se lá de onde, o qual havia convencido aquela sociedade de que era um homem rico. Pois bem, a moça, ainda que nutrindo sentimentos por A., disse-lhe que se casaria com o seu noivo, o forasteiro supostamente rico. Porém, após a consumação do casamento, não tardou para que o noivo, além de infiel, se revelasse também um golpista, detentor apenas de uma grande perfídia. Aqui você deve estar se perguntando, bom, nesse caso, a moça se separou do rapaz e ficou com o grande amor da sua vida, agora médico, advogado e deputado de reputação ilibada, não?

Penso que até poderia ter sido, caso estivéssemos falando de um romance, por exemplo, desses escritos para terem seus direitos comprados por uma grande produtora de cinema. Mas, não sendo este o caso e estando em jogo a vida real (que, como costumo dizer, não imita a arte que a recria, no mais das vezes, com toques mais sutis), a resposta é não. Repito: se a história de A. fosse o roteiro de um filme, é óbvio que um dia, ainda que fosse em seu leito de morte, ele ficaria com a mocinha. Porém, no asfalto duro e cinza da vida que é a real, ele, ao saber da separação do casal, disse, ela fez a escolha dela. Ponto. E nunca se casou. Segundo os relatos que ouvi, A. se relacionou com mulheres interessantes, inteligentes, bonitas e, a vida é mesmo irônica, muito ricas, mas nunca se comprometeu com nenhuma delas. Aqui, meu lado romântico (que por mais pisoteado que esteja de vez em quando ainda dá o ar da graça) fica imaginando se A. para sempre amou a moça do interior. Será? Considerando que ele está morto há muitos anos, jamais terei a oportunidade de lhe perguntar. De qualquer forma, fico pensando que, em seu lugar, eu teria agido da mesma maneira, ou seja, não teria ficado com a moça após a recusa (que, convenhamos, foram duas, uma pela falta de dinheiro e a outra pelo noivado com um pretenso bom partido), o que talvez não fizesse de mim uma pessoa mais feliz caso eu ainda a desejasse.

Alice Ayres ou Jane Jones? Quebrou não tem mais jeito, mesmo? Tenho pensado…

Itu, 9 de junho de 2023.

segunda-feira, 8 de maio de 2023

Então eu chorei

Eu vinha há tanto tempo pensando em chorar, até que então eu chorei. Mas sem pensar. As lágrimas simplesmente escorreram, tais quais as palavras simples de Natalia Ginzburg que as fizeram brotar. As pequenas virtudes, o último ensaio do livro de mesmo nome, termina com palavras que fazem chorar não tanto pelas pequenas, mas principalmente pela grande virtude.

Chorei pelo tempo que ainda tenho para deixar de me trair; chorei pelo espaço e pelo silêncio que me foram roubados nos últimos meses; chorei por saber que, por mais doloroso que seja sofrer uma injustiça, muito pior é cometê-la; chorei por já ter percebido que na vida há poucas recompensas para os esforços e quase nenhuma punição para a crueldade, a perfídia, o cinismo e a mentira. Chorei pelo sofrimento de quem não pode mais do que chorar e latir, de quem jamais abraçará e receberá o abraço e o beijo de seu pai humano como vi acontecer hoje com o cão Vitório Augusto na rua da minha casa, pela qual também chorei. Chorei pela avareza, pela pobreza de espírito, pela pequenez do quintal no qual vi uma cidade se transformar. A cidade onde eu moro não passa de um pequeno quintal cercado por muros tristes e desbotados, dentro dos quais os seus habitantes se protegem, com falsa moral e ladainha religiosa, da liberdade de uma vida estrangeira.

Eu vinha há tanto tempo pensando em chorar, mas não tinha coragem. Estava, como se costuma dizer, sem coragem. Então ontem a lembrança de um livro veio junto da memória da exclamação que precedeu a inscrição da dedicatória do seu autor. Coragem!, foi-me dito, olhos brilhantes e curiosos encarando os meus. A coragem, então, veio antes das lágrimas.

Foi a minha mãe quem me fez lembrar do livro e foi nela em quem eu pensei do início ao fim enquanto lia o ensaio e comparava as pequenas às grandes virtudes. A minha mãe, pude então constatar, é uma pessoa afeita às grandes virtudes. Quem tem e não gasta não merece ter, eu a ouço dizer com frequência dentro da minha cabeça; nela, na minha mãe, nunca vi a palavra mesquinhez. Dela sempre ouvi, a vida é boa; é difícil, mas é boa. Dela ouço o imperativo insistente do verbo, escreva, escreva, escreva. Ela nunca me recompensou pela execução das tarefas domésticas ou dos meus deveres escolares; nunca sentou comigo para estudar, nunca fingiu que a vida seria, para mim ou para qualquer outra pessoa, algo que ela sabia que a vida não é. A vida dela não foi fácil, mas ela não abandonou a sua vocação. Apesar de todos os seus pedaços mortos e da mãe que ela só tem agora nas nossas lembranças, a minha mãe é, com tudo dela que lhe foi tirado, inteira. A minha mãe é toda amor.

Então eu chorei com a palavra amor.

Sorocaba, 6 de maio de 2023.

segunda-feira, 13 de março de 2023

Dogville

Fiquei com muita raiva de você, mas agora passou. Nasci com muita raiva, ou melhor, não. Quando criança, vejo nas fotos um olhar de um brilho que só pode ser de alegria. Eu tinha muita alegria e só uma semente de raiva, plantada, provavelmente, pelo alheamento do meu pai. Autista, será, como atualmente tem me parecido a maioria dos homens? No início a raiva era só essa semente que, depois, com o tempo, com os anos, com o deixar de ser aquela criatura falante, simpática, curiosa e cercada por pessoas que me enchiam de cuidados, de amor e de proteção, foi crescendo. Deixei de ser essas e tantas outras coisas mas, curiosa, preciso corrigir, ainda sou. Além de precisar desesperadamente ler, ver, estar em outros lugares, gosto de escutar, embora ultimamente esteja sem paciência para ouvir. Paciência, convenhamos, é um negócio que a vida nos enfia goela abaixo, mas paciência para ouvir é diferente, é de outra ordem, não se adquire à força, por mera resignação. Exige uma série de requisitos, sendo que dormir talvez seja o principal deles. Dormir num contínuo, sem interrupções. Eu não tenho dormido assim, você sabe. Eu mal tenho dormido e, sem dormir, quem é que consegue pensar direito, fazer conexões, inteligir as coisas? Curiosidade, aliás, é outro nome que estou dando para inteligência, porque se eu fosse homem teria dito desde o início que eu era simpática, falante e inteligente. Mas sou mulher e aí você sabe, nós, mulheres, por melhores que sejamos, raramente nos autorizamos a nos colocarmos nos nossos devidos lugares. Diferente dos homens que, para dizerem de si maravilhas (que no mais das vezes não são verdades), não hesitam por um instante sequer. Mulher inteligente não é socialmente bem-vista nem bem-quista. Existem as bolhas, claro, que, nessa qualidade, são lugares de exceção, ilhas no meio do oceano. Um ex-amigo que após muitos anos viajando pelo mundo deu descarga na nossa amizade com uma cantada barata e uma proposta indecente, um dia me disse, você precisa fingir que é mais burrinha para os caras gostarem de você. Noventa e tantos por cento dos meus amigos teriam medo de você. Os amigos, claro. Ela parece uma esponja, a minha mãe disse ao médico, na minha frente, quando eu era muito pequena. Entendi na hora. Talvez isso fosse difícil para ela, lidar com uma criança assim, você falou quando lhe contei. Eu não sei, mas acho que não, acho que era bom para ela ter quem a ouvisse, pois eu a escutava com muita atenção. Diferente do meu pai, que era indiferente a nós duas. Você andou cedo, com um ano não usava mais fraldas, foi o que ela me contou recentemente. Não pode ser. Tem certeza? Sim, tenho. E um pouco depois não queria que ninguém limpasse você. Nessa época, com menos de dois anos, passou na frente da escola com a sua tia e quis ficar. Olhou por baixo do portão e quis ficar. As suas palavras eram bem articuladas, lembra daquela gravação que o seu avô fez, você cantando com perfeição o hino nacional? Lembro, claro, ouvi infinitas vezes essa fita num pequeno gravador de fitas cassete que tinha um microfone e que eu achava genial, assim como achava genial o meu avô. Aliás, até uma certa idade, eu nutria uma grande admiração pelos homens; tinha muitos amigos, gostava da companhia masculina, achava os homens mais livres e mais descolados de certas formalidades. Como eu. Demorei para ser mulher e, desde então, os homens têm me parecido criaturas muito, muito primitivas e até certo ponto, desprezíveis. Todos os dias da minha vida, aliás, lamento não ter feito a escolha certa de objeto, que seria, sem sombra de dúvida, a homossexualidade, pois ser uma mulher heterossexual nos dias de hoje é praticamente uma maldição.

Olhando daqui, o parágrafo acima pode ser considerado um resumo da minha vida, ou seja, há quarenta e quatro anos venho absorvendo do mundo tudo o que posso, venho tentando articular bem as palavras, exortando as pessoas ao meu redor a me deixarem em paz com a minha própria bunda e vendo crescer uma raiva que em determinados dias me faz ter vontade de dizer para muita gente, como no título daquele livro da Ariana Harwicz, morra, amor.

A raiva que fiquei de você foi a mesma que tenho quando alguém não se responsabiliza pela própria merda, ou não é responsabilizado por ela. Coloquei essa vírgula antes do ou e fiquei pensando nas vírgulas da minha ex-amiga, a que queria que eu escrevesse como o noivo, agora possivelmente marido, dela. Nunca mais a vi, nunca mais nos falamos, essa nunca me fez falta. Ao contrário da outra, você sabe quem. Por esta, chorei muito. Raiva tenho mesmo só da das vírgulas. Da outra tenho uma interrogação. Voltando, você não devia ter dito que o problema era meu; ainda que esteja incomodada, não fui eu que caguei aquela merda toda e esse tipo de frase é boa de escrever mas difícil, no começo, de bancar. Porém, como eu já disse, e o divã é minha testemunha, nem sexo nem escrita limpinhos me interessam.

Aliás, nada que tenta parecer o que não é me interessa. Contei para uma colega e amiga que todos os dias me vê e que vem acompanhando a saga da insônia há meses sobre a reação dos presentes na reunião na qual expus a situação causadora não só da minha impossibilidade de dormir como também da minha angústia e do meu desespero, e ela disse, nossa, parece Dogville!, assim, com uma exclamação. Foi aí que descobri que vivo em Dogville e fiquei com mais raiva ainda. Gosto justamente muito do verbo descobrir pois ele vem com esse descortinado de tirar algo que está em cima de outra coisa, e aí, nessa reunião, enquanto um homem dizia que talvez fosse interessante ter alguém de fora para fazer o que tinha que ser feito sem desagradar aos outros, descobri que não daria para conversar. Por mais que eu goste das conversas que eventualmente tenho com crianças, o assunto em questão, a responsabilidade pela merda alheia, envolvendo incapazes, criaturas indefesas, era assunto para ser tratado pelo psiquismo de um adulto.

Criança é assunto sagrado, não é? Ai de quem apontar um limitezinho que seja para uma criança desconhecida. Limite não pode mas deixar a criança ilimitadamente exposta a ruídos enlouquecedores, dia e noite, todos os dias, aí ninguém tem nada a ver com isso, porque dentro das quatro paredes da casa dos outros, o que se passa na casa dos outros, é só do outro. Bateu, espancou, gritou, matou? Fazer o quê? Agora, no ambiente externo, bom, a piscina lá de Dogville, por exemplo, é um lugar que muitas vezes fica repleto de crianças. Eu estava lá numa tarde dessas, estendida sobre a minha canga e quase absorta num livro, quando ouço, Marcelo*, você é chato, gordo e está com sobrepeso. Olho para a piscina por cima do ombro e vejo Marcelo com o rosto contraído, a poucos graus de derreter e de se esvair da sua boia. Simultaneamente, o outro garoto, o que havia proferido aquela espécie de sentença, o olhava com indisfarçável desprezo e sem qualquer nesga aparente de remorso. Na outra extremidade da piscina, pequena - ela é bem pequena, assim como as casas e sobrados, mas alguma coisa existente talvez na água que abastece algumas das unidades faz com que os seus moradores acreditem não pertencer à classe média, bem média, da população -, duas mulheres, provavelmente mães de algumas das crianças, observavam seus filhos saltando e despejando boa parte da água da piscina para fora dela, e eventualmente diziam, num tom lasso, sem a menor convicção, não pulem, vão molhar a moça, olha o livro dela. E aqui tem uma coisa que me intriga e que não é a lassidão em si, mas a lassidão vestida com aquele verniz parental de cor opaca e com roupas em plena tarde muito quente de verão. Mãe não coloca biquíni para olhar o filho na piscina por quê? Os pais, em geral, aparecem por lá em trajes de banho. Será que as mulheres, quando são mães, ficam exaustas demais até para se bronzearem ou para se refrescarem? O que é que nós, mulheres, afinal, estamos fazendo com as nossas vidas?

Chega então o dia oito de março, o dia internacional da mulher, que obviamente só existe em razão do fato de que há séculos nós somos massacradas, silenciadas, oprimidas, espancadas, exploradas menosprezadas, rebaixadas à qualidade de cidadãs de milésima classe, estupradas, mortas etc., etc., e a temperatura medida no termômetro da minha raiva sobe. Sobe, sobe, sobe. Fotografia das mulheres no trabalho. Fotografia, como um animal exótico num zoológico? Mulheres que trabalham, uau, que interessante, vejam essa possibilidade que lhes foi concedida, apesar de serem o que são. Vamos lá, vamos fotografar, vamos registrar esse fato tão digno de nota, esse fato que nos torna homens melhores, que permitem que vocês, mulheres, tenham um trabalho remunerado para além daquele escravo que vocês exercem em casa. Com raiva, recuso-me. Leio então o texto de uma postagem numa rede social escrito no melhor estilo esquerdomacho por um homem que um dia frequentou a minha casa e para o qual, a uma certa altura do campeonato, tive que explicar que o mínimo que ele poderia fazer era tirar o próprio prato da mesa. Claro que aqui se trata, além de machismo, de falta de educação, mas vamos nos ater apenas ao primeiro elemento. Esse mesmo homem insistia em transar sem camisinha, mesmo sabendo que estava saindo com outras mulheres, literalmente cagando, assim, para a saúde alheia, já que o importante, no caso, era única e exclusivamente o prazer dele, sua majestade o rei homem (adorei essa expressão que você usou na nossa última sessão, então a peguei emprestada). Criatura desnorteada que um dia teve a audácia de dizer, deitada na minha cama, que queria mesmo era comer todo mundo e que pediu para voltar alegando que não era qualquer um mas sabendo, de antemão, só por essa frase, ser apenas mais um desclassificado, fato por mim provado e comprovado. 

Como amar os homens, pergunta Vera Iaconelli, na Folha de São Paulo, quando todos são machistas? O texto, sinceramente, poderia ter sido mais incisivo, mas o título é bom. Como, você me pergunta, e me fala das diferenças. Devolvo a pergunta. Como seguir amando um homem que um dia me diz, você fala Inglês, Espanhol e agora vai falar Francês? Como assim, e eu? Um homem quinze anos mais velho que eu, com o qual vivi por cinco anos, e que era um poço de insegurança e de indiferença camuflado de marido exemplar. Vocês eram um casal exemplar, ouvi repetidas vezes após a separação. Exemplar para quem? O que é exemplar? Quem era aquele homem com quem eu tinha constantemente que pisar em ovos? Quem era aquele homem que precisava se pavonear de tudo o tempo todo? Quem era aquele homem que afastava de mim todos que me queriam bem, da minha família aos meus amigos pessoais, aqueles que não eram amigos em comum? Quem era aquela criatura que não conseguia aceitar o fato de ter uma companheira que lhe fosse intelectualmente superior? Sim, porque o cérebro por trás de todas aquelas viagens era o meu, jamais o dele. Isso sem falar no dinheiro. Quantos homens não "posam de bacanas" por aí às custas também do trabalho e do dinheiro de suas companheiras, sem lhes darem os devidos créditos? Quantas vezes não ouvi, nem ferrando que eu vou deixar de viajar neste final de ano, frase que vinha acompanhada de um bico, mesmo quando a grana estava curta? E a fatídica frase, dita no cartório, no dia da dissolução formal daquele buraco no qual havia se transformado a minha vida, agora vou ter que voltar a trabalhar às sextas-feiras. Até hoje, fico pensando se ele se deu ou não conta do que estava dizendo, aquele homem mimado e vaidoso.

Retomando a escuta, ontem ouvi uma fala maravilhosa, de uma mulher, Tania Rivera, sobre psicanálise antropofágica, título de um dos livros dela, e sobre mulheres. Ela citou um estudo dirigido por uma outra mulher, Rita Segato, num determinado presídio, no qual foram ouvidos, durante um período, homens que foram condenados por terem estuprado mulheres. A conclusão da pesquisa é que, no geral, esses homens, que levavam uma vida normal, um dia simplesmente foram levados a estuprar uma mulher por algo que na verdade tinha a ver com o olhar de um outro homem. Em outras palavras, o que estava em jogo na cena era o olhar de outros homens, como se o estupro fosse uma forma de validação da masculinidade do estuprador por outros homens. Surpreendente? Para mim, não. O que vejo, na vida real, é que os homens adoram os outros homens, basta observá-los juntos. Há um brilho, uma coisa, uma tensão, uma energia entre eles que não se vê entre mulheres ou entre homens e mulheres. Os homens gostam mesmo é dos homens, poucos são aqueles que gostam das mulheres. E o mesmo, infelizmente, pode-se dizer das mulheres. Poucas são aquelas que gostam das mulheres, a começar de si mesmas.

E sabe o que me ocorreu durante esse encontro de ontem? Que, seja lá o que isso for, a caneta é um objeto fálico. Pensei então na Cixous, nas nossas sessões, nos nossos fragmentos. Lembrei de você dizendo, é por isso que as mulheres precisam escrever, falar sobre si mesmas, quando eu disse ter ouvido de pelo menos três psicanalistas homens que os aplicativos de relacionamento haviam sido uma ótima invenção para as mulheres, principalmente para as mais velhas. Ótima invenção, como assim? Esses aplicativos, ferramentas que funcionam a partir de uma lógica capitalista grotesca totalmente moldada por aquilo a que hoje se dá o nome de masculinidade tóxica são bons somente para os homens, para mais ninguém. O machismo, a misoginia, os absurdos, as aberrações que se veem ali, quando você é uma mulher, é algo da ordem do aviltante, do obsceno (e eu não estou falando em termos morais). Eu, na condição de mulher, sobre os aplicativos, posso dizer apenas que tudo o que eu mais queria é que eles não existissem, pois de capitalismo selvagem, narcisismo primário, burrice, machismo e misoginia este inferno que é a nossa sociedade já transbordou.

Quem me lê pode até pensar, ah, ela odeia os homens, mas sabemos que não é disso que se trata. Sinto falta dos homens, daqueles que estejam dispostos a se posicionarem como sujeitos e não como objetos. Alguém que não se vê como um sujeito não consegue ver o outro, ou melhor, a outra, dessa forma. Na posição de objeto a vida fica restrita a poucas possibilidades, que estão infinitamente aquém daquelas que a posição de sujeito, com toda a sua complexidade, carrega. Algo muito comum nos aplicativos, e na vida real, é ouvir dos homens, quero leveza, quero uma relação leve, pessoas leves, mulheres leves. Ao que eu sempre penso, se você quer leveza, vá comer isopor. Converse com um isopor, viaje com um isopor, tome uma bebida ao lado de um isopor, vá ao cinema com um isopor. A resposta está aí, fácil, num pedaço de isopor. A pessoa não precisa se dar ao trabalho de fazer uma conta num aplicativo ou de interagir com qualquer outro ser humano seja por qual meio for. Basta um isopor. Também é muito comum, praticamente uma regra, ouvir, mulher enche o saco, mulher pega no pé, mulher tira a paz. Ao que eu penso, ótimo, então fique em casa, sozinho (ou com um pedaço de isopor), batendo uma punheta. Nós, mulheres, sendo tão inconvenientes assim, de fato, vocês devem mesmo se abster de qualquer contato conosco. Até porque, imagine só, sua majestade o rei bebê tendo que abrir mão, ainda que de uma parte ínfima, da sua rotina, do seu desejo, do seu dinheiro, das suas coisinhas, para escutar uma mulher? Sua majestade o rei homem tendo que abrir a mão para pegar na mão de uma mulher? Essa realmente parece ser uma hipótese que traz consigo fortes indícios de crime de lesa-majestade.

Você me diz, mas tem caras legais, e eu pergunto, onde estão? Aliás, onde estão as pessoas que não vivem em Dogville? Você então poderia me perguntar o que uma coisa tem a ver com a outra, ao que eu responderia que tem tudo a ver, que Dogville só é Dogville graças a isso que que está ali, permeando a sua base e mantendo as suas estruturas em pé. Sendo mulher, eu sei, eu sinto, que é impossível dissociar todo o mal que nos sufoca do mal que existe no sistema patriarcal, no machismo e na misoginia. Talvez a questão seja apenas ter olhos para ver e ouvidos para escutar. Dormir e acordar com um novo olhar para ver as coisas como elas são e não da forma pretensamente leve, com textura de isopor, que a nossa fantasia nos incita a imaginar. Meu corpo, aliás, está pesado e a raiva, a raiva estou cuspindo, exatamente como eu disse que faria. Aliás, para a minha surpresa, no final do encontro de ontem, a palestrante, enquanto empunhava a caneta e escrevia a dedicatória no livro que eu havia comprado, falou, vomite! Aqui estou, aqui estamos.
 
Itu, 12 de março de 2023.


*O nome do garoto foi trocado.

sábado, 4 de fevereiro de 2023

Jane Jones

Manhã de quinta-feira. Ela salta da cama com uma urgência que, mais cedo naquele mesmo dia, não havia gritado com tanta força. Mal se equilibrando sobre os próprios pés, atravessa a porta do banheiro como se do ato de alcançar o chuveiro dependesse a sua vida. A cabeça dói e o corpo implora para que ela despeje imediatamente o vinho verde ingerido na noite anterior no buraco mais próximo, preferencialmente, para não despertar a fúria da sua psicose de limpeza, no vaso sanitário. Detesto vomitar, ela pensa, odeio vomitar, vomitar é a morte, não vou vomitar, decide, e desvia os olhos da privada para a pia, onde outra concavidade a atrai como um ímã e onde ela descobre, jazendo sobre a pedra plana que circunda o pedaço de louça em formato de meio ovo de Páscoa, um objeto cujas cerdas azul bic contrastam de forma quase obscena com os tons discretos que o rodeiam. Como um raio, um pensamento a atravessa e ela volta a sua atenção para o box, em cujo interior, uma vez aberta a torneira, a água morna que desce pelo seu corpo suaviza o peso da palavra.

---

Essa palavra vinha caindo sobre mim quase que diariamente, como uma chuva forte de verão, dessas que chegam sem muito aviso e levam tudo o que encontram pela frente. Confesso que falei como quem diz uma coisa, mas logo percebi que a coisa era outra. Confissão inútil, eu sei, pois você já sabia. Os seus silêncios, mais quietos que os de costume quando o assunto era esse, sempre indicaram isso. Além do mais, quem é que diz para a analista, vou viver essa história sobretudo para escrevê-la, numa assunção deliberada de uma escolha mórbida, mais condizente - a despeito da presença de todo aquele Eros - com a pulsão de morte do que com a de vida? Nesse ponto, desde o início, eu sempre pensava na personagem que a Natalie Portman representou naquele filme, Closer, e ficava me perguntando, Alice Ayres ou Jane Jones?

Aliás, acho tão bonito isso de numa psicanálise a gente poder se confessar e ainda assim manter o laço com o outro. Ou justamente por isso. Essa relação analista e analisanda, que vai ficando cada vez mais sólida... Claro, falo por mim, pela minha análise, mas como também já experimentei um pouco do outro lado posso dizer que é igualmente bonito quando uma pessoa está ali, entregando algo que é tão dela e com uma confiança tal que essa beleza não raro acaba surgindo acompanhada de ternura. Fico tão emocionada com esse tipo de acontecimento que eventualmente acabo até chorando em séries como Sessão de Terapia. E essa sacada com as palavras, que continuo achando que é mágica mesmo sabendo que não é. O trabalho da analista é das coisas mais lindas que existem, assim como o da escritora. Escrever a vida, como a Annie Ernaux fez em Os anos.

Andei pensando naquela expressão, dar a palavra, e acho que, nos dois sentidos, dar a palavra é um ato de amor. Tanto no sentido de escutar e de acolher a palavra do outro como no sentido de dizer, de dar a sua palavra sobre as coisas, sobre si mesmo. É um ato de amor e de coragem, pois eu tenho a sensação de que atualmente a palavra provoca fuga. Foge-se da palavra como o diabo foge da cruz, e não por acaso, já que a palavra enlaça, envolve, compromete, ou seja, a palavra faz tudo o que, num funcionamento primário, ninguém está interessado em fazer.

Recentemente, numa reunião de condomínio, fiquei estupefata com o mutismo alheio. Mutismo, aliás, que dado o tema colocado em pauta por mim - sim, estou me referindo à situação dos dois cachorros que vivem na casa que faz fundos com a minha -, pode, sem maiores rodeios, ser chamado de covardia. Dar a palavra, pois é, requer coragem. Amar também, e é impossível amar sem palavras.

A palavra covardia invariavelmente me remete ao meu pai. Por que você nunca me chamou de filha, e ele riu. Ele me deu um nome, mas nunca me reconheceu. Sob o mesmo teto que o meu durante os primeiros dezessete anos da minha vida, dormindo no quarto ao lado, fazendo as refeições em silêncio e com a cara amarrada ou batendo, de forma muda, portas e janelas para expressar o ressentimento que a nossa presença, a minha e a da minha mãe, provavelmente lhe causavam, esse homem nunca esteve ao meu lado. O meu pai nunca foi meu pai. Na madrugada da morte do meu tio, ao ter o sono incomodado pelos meus soluços, ele foi até o meu quarto e falou, por que você está chorando? Eu não soube como responder.

Agora que estamos falando nisso, penso que trauma é a palavra que melhor define a minha relação com o meu pai, uma relação em cujo cerne sempre esteve a ausência de palavras. Talvez por isso eu tenha ido buscá-las tão desesperadamente em outros lugares, como nas páginas dos livros ou nos contornos e nos cheiros de outros corpos.

O amor, venho pensando, não é uma construção. O amor é uma invenção, a invenção de uma história criada e contada com palavras. Negar a palavra é o mesmo que negar a possibilidade do acontecimento de uma história, é como se trancar numa gaiola, exatamente como o meu pai fazia e ainda faz consigo mesmo ao viver rodeado por pássaros que ele mantém trancafiados em gaiolas, a exemplo de um carrasco, de um torturador, que observa impassível o sofrimento das suas vítimas. Negar a palavra é dar o tapa que a Alice recebe na cara.

O que fazer com isso, você me pergunta, e eu respondo do divã com o verbo e, de onde quer que eu esteja agora, com o ato.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

E daí se eu tenho uma vagina?

Um desconhecido me diz, num abrupto giro de pescoço seguido de um leve empinar de queixo, a propósito de um evento vivido por mim, que naquela situação havia faltado um homem. Enquanto regurgitava ali, no meio do corredor, a falta que muito provavelmente não me dizia respeito, esse homem, cuja inquietação vinha sendo possível alcançar desde o momento em que havíamos começado a nos acomodar nos insólitos assentos de um avião, parecia sincera e surpreendentemente inconsciente a respeito do fato de que ser homem não o havia livrado das penas por ele experimentadas no mesmo contexto temporal e espacial pertencente ao meu relato, conforme ele mesmo, aliás, havia confessado minutos antes.


Desembarcamos de um trem e eu vejo a minha mãe olhando para as pessoas que vão e vêm pelas plataformas e ao mesmo tempo para o nada, francamente desnorteada, como se estivesse vendo o impossível se descortinar sob os seus olhos. O que foi, pergunto. Ela então balbucia que uma amiga acabara de lhe dizer, por WhatsApp, que mulheres viajando sozinhas dão a impressão de estarem à caça. De quê? Pergunto, segurando a minha língua e o braço da minha mãe e anotando a expressão no meu bloquinho mental.


Também pelo WhatsApp, uma amiga me pergunta, logo no início da única conversa que temos ao longo dos dias em que estou viajando, se já conheci alguém. Desconverso, utilizando uma técnica que alguns classificariam como manipuladora e sutilmente cruel e que, apesar da aparente simplicidade, levou anos para ser aprimorada. Nesse caso, para além do bom desempenho da minha estratégia, o que saltou aos meus olhos foi o fato de que ainda que eu estivesse chafurdando em beleza, arte, História, garrafas de Chianti, taças de Spritz, gelatos, massas, cremes e doces indescritivelmente gostosos, o foco da curiosidade alheia seguia voltado para a questão, você já conheceu alguém?



A pergunta então me veio assim, piscando, como um letreiro de néon já meio esculhambado, desses que não se decidem a se manterem integralmente acesos e que a qualquer momento podem se apagar: e daí se eu tenho uma vagina?

---

Annie Ernaux, que ganhou o prêmio Nobel de literatura recentemente, escreveu um livro chamado O acontecimento sobre o aborto que ela fez quando era uma jovem estudante universitária e quando abortar ainda era um ato tipificado como crime na França. Pois bem, logo no início do livro, Ernaux escreve, ao falar sobre os eventos que a fizeram engravidar, ou seja, sobre as suas transas com um outro estudante: "no amor e no gozo, não me sentia um corpo intrinsecamente diferente do corpo dos homens." Essa foi, não por acaso, a frase do livro que mais me marcou. Assim, fiquei surpresa quando, ao ouvir uma análise do romance feita por uma psicanalista, essa mesma frase é abordada com um sentido totalmente diferente daquele que a mim me tocou. Para essa analista, o acontecimento ao qual se refere o livro não é o aborto em si mas a descoberta, inconsciente, do corpo feminino, de um corpo de fêmea, de um corpo que engravida, interpretação da qual eu não poderia discordar mais cabalmente. O que, afinal, é um corpo feminino? É aquele que dá à luz? Mas e os corpos femininos que não podem ou que não querem, de uma vez por todas, dar à luz a alguém, ou não dessa forma? E aqueles que querem simplesmente se iluminar? O que é ser uma mulher dentro de um corpo? Um corpo de mulher pode simplesmente desejar um outro corpo, o de um homem, por exemplo, só pelo desejo puro e simples, como alguém que olha com avidez para um pedaço de carne suculenta visto numa bandeja que um garçom carrega por entre as mesas de um restaurante? O que são e a quem pertencem o masculino e o feminino? Dito isso, penso que o livro é todo, sim, sobre um aborto e sobre um desejo, ambos narrados com seca e dilacerante coragem. É necessária tanta coragem para escrever, e também corpo e solidão.

Solidão da qual eu não desejo, em hipótese alguma, abrir mão, e que me faz sair correndo até a farmácia numa noite de domingo para comprar um anticoncepcional, enquanto ouço a voz da minha nova ginecologista dizendo, só se você for muito cagada pra ter um câncer com esse histórico. Cagada mesmo seria engravidar, eu replico, falando sozinha, e pensando que finalmente, depois de uma vida inteira, encontrei uma ginecologista que parece ser zero careta. Pois que, meu Deus, quem nunca se intimidou com um comentário feito por uma ou por um ginecologista ou não teve vontade de sair correndo do consultório após receber um olhar de reprovação ou de suspeita, mas não sem antes perguntar, afinal, qual é a sua, você está aqui para me tratar ou para me julgar?

Billie Eilish, que vive exposta ao julgamento de todo um planeta, disse, numa entrevista recente, que gosta de se sentir mais masculina do que feminina e que isso foi algo difícil para ela por um tempo. Achei interessante e penso que, ainda que ela seja muito jovem, essa é uma questão que provavelmente a acompanhará pela vida afora, ou pelo menos é assim que foi comigo, que passei a vida oscilando entre mostrar ou não o meu corpo em roupas mais ou menos largas (sigo preferindo as largas), entre ser mais feminina ou mais masculina, o que, confesso, nunca me impediu de me comprazer ao ouvir, depois de ter sido vista nua por um homem, que tivesse a primeira noite sido ou não a única, ele se lembraria do meu corpo pelos dez anos seguintes.

---

Naquela noite eu apertei o rec sem perceber, sem música pra gravar, só com o som ao redor. Mas trilha sonora importa, como você bem sabe, e no fim resumi o nosso álbum a um EP, uma playlist irretocável que em cinco músicas entrega, com perfeição, o conceito da coisa toda. Nunca te mostrei e nunca vou te mostrar mas já a ouvi à exaustão andando pelo caminho de terra e árvores do qual se vê a sua casa, que agora parece outra. Será que as casas também mudam? Naquela noite sem som eu só ouvia a sua voz e acho que foi isso o que me fez ficar ali, é com a voz que os hipnotizadores trabalham, não é, ficar sem cerimônia, como se a luz do dia que entrava pela janela do seu quarto fosse minha, ainda que me fosse completamente estranha. Será que a abstração que se vê da rua, à meia-luz, pairando numa das paredes do seu quarto, já existia? Havia mesmo todo aquele branco nela? Naquela noite tudo parecia tão escuro. Agora, há claros que eu não reconheço, da mesma forma que não reconheço as manhãs, cuja textura, misturada à da sua pele, tem o tom de Vapor Barato, versão Gal, que vai ser pra sempre fatal, assim como o são as cenas finais de Terra Estrangeira, da Daniela Thomas e do Walter Salles, quando embaladas pela música do Macalé. Chorei pra caralho nesse final, mas acho que nem foi de tanta tristeza. Foi outra coisa. Pode ter sido até de saudade. É por isso que quando você me diz que eu pareço te esnobar eu fico sem saber o que dizer e quase te mando, não a playlist que você nunca vai ouvir, mas a Gal dizendo aquela coisa, de novo, tão fatal, que muitos não sabem como dizer e outros não sabem como escutar, a Gal te chamando de meu bem e falando da sua estupidez, a que não te deixa ver que eu te amo. Ao invés disso, ouço a Beth Gibbons cantando It Could Be Sweet e troco, na minha cabeça, o tempo verbal, porque é isso só o que eu sei fazer, ficar pensando no tempo e nas formas das palavras. Cozinhar, você viu, eu não consigo. Hoje joguei fora uma panela inteira que não deu certo e, nos últimos dias, rasguei folhas e folhas cobertas por textos imprestáveis. Escrever qualquer coisa, escrever poesia, isso é fácil, ouvi de um professor, um acadêmico, na noite passada. Fácil pra quem? Você por um acaso já foi Hilda Hilst algum dia, já enlouqueceu de desejo de colocar o mundo numa folha de papel, sabe o que é estar dirigindo, trabalhando, comendo, andando, falando com alguém enquanto as frases se descortinam na sua frente sem que você possa efetivamente escrevê-las? Você sabe o que é o inferno de viver nessa urgência?

A Marguerite Duras, por exemplo, sabia, e por isso ela escreveu tanto, e também amou. A urgência da escrita não é muito diferente da do sexo. A diferença é que sexo pode virar texto, mas a escrita, essa dita "fácil" por um acadêmico desavisado, não há como escrevê-la.

É só o fluxo do rio, e mais nada.

terça-feira, 18 de outubro de 2022

É impossível ser feliz sozinho*

Subindo e descendo, como uma onda, é assim que anda o meu humor.

Eu não quero saber, digo, baixinho, a uma amiga; por favor, não me mostre nada, não me fale nada agora. Só vou saber quando acabar.

O sonho põe fim ao meu sono e, já de olhos abertos, procuro nas dobras da cortina do quarto uma resposta para o que está acontecendo. Percebo então que no palpável da vida o dia ainda está por vir e que no sonho, apesar da contagem ter sido iniciada, o dia é o da véspera, e não o do acontecimento. Considerando que na vida real os sonhos de angústia, os famosos pesadelos, costumam interromper o sono, por que será que ainda tem tanta gente dormindo? Quanto tempo dura um pesadelo?

Saio arrastada da cama e tento me animar com o meu balde de café matinal, uvas verdes sem sementes cobertas por uma fina camada de mel e uma fatia de pão (sem glúten, por puro capricho) acompanhada preferencialmente de geleia de laranja e de uma fatia de queijo branco. Todo dia faço tudo quase sempre igual ao acordar. O mesmo cardápio e um romance, aquele que eu estiver lendo no momento, e necessariamente há algum. Impossível viver sem literatura e eu fico levemente horrorizada quando alguém me diz que o faz, o que ocorre com a maioria das pessoas que conheço. Aliás, se algum dia se apresentar diante de mim uma criatura que precise igualmente do silêncio e do sabor do café da manhã para, com a ajuda de um livro, fazer a transição do mundo do sono para o mundo concreto, chatinho e funcional que fica lá fora de casa, bom, eu caso com ela e não a abandono nunca mais, de maneira que a minha definição de amor, a minha resposta para a pergunta, o que é o amor, talvez seja essa, amor é quando duas pessoas podem ler seus respectivos livros em silêncio e sem serem interrompidas a todo momento uma pela outra com alguma conversinha fiada durante o café da manhã. Parece simples, mas não tem sido.

Vou para o mundo e digo, para quem quiser ouvir, que não consigo conversar. Uma amiga me conta que anda desejando luz para todo mundo. Faz sentido e eu acho lindo mas a única luz que atualmente sai de mim é a do meu olhar quando fulmino, com os olhos, casas e carros, a exemplo da caminhonete enorme e ostensivamente branca, como um traje de um integrante da Ku Klux Klan, parada no estacionamento da padaria. Ou seja, o único lugar seguro para mim, atualmente, é dentro de casa, e com as cortinas fechadas.

Então eu me tranco e tento ser feliz pensando nas férias que se aproximam. Para começar, miro na perspectiva de passar horas lendo romances em aviões e trens. Sei lá o que me dá (eu poderia aqui até me aventurar pelo o que Freud diz no segundo dos três ensaios sobre a teoria da sexualidade acerca da ligação entre viagem de trem e sexualidade, mas vou deixar que você, leitxr mais curiosx, leia Freud e faça a sua própria viagem, de trem ou não), só sei que ler nessas situações me torna uma mulher plena. De maneira que, no meu caso, teoricamente basta um livro e um bilhete de trem para colocar um fim, ainda que temporário, nas minhas angústias existenciais. Ou pelo menos antes era assim. E agora, como será?

Volto a descer para a realidade cotidiana e ouço de um amigo que determinadas pautas são difíceis de explicar. Difíceis como? Quais pautas? As humanitárias? Fico então pensando na inversão da lógica ou na lógica da inversão e concluo que milhões, talvez bilhões de seres humanos que habitam o planeta simplesmente não saibam o que é ser humano. Do contrário, por que questões humanitárias teriam que ser explicadas? Mas será que é mesmo disso que se trata? Qual, afinal, é a grande questão humana que reside aí? É uma só? E a minha, qual é? Por que a música do Tom Jobim não para de tocar na minha cabeça?

Subo de novo quando descubro que, ao contrário do que parecia, ou melhor, do que não aparecia nas minhas pesquisas, há um guia Lonely Planet atual, com as revisões que se fazem necessárias ao longo de uma pandemia, disponível para compra. Quando o tão desejado objeto chega até mim, abro a caixa de papelão que o embala e, ao retirar o fino plástico que recobre o exemplar, fico inebriada com o cheiro do volume e com a minha própria loucura. Na era do tudo virtual, quem, em sã consciência, é capaz de ficar radiante com a ideia de transportar, para cima e para baixo, durante dias, um guia de viagem relativamente robusto, já que com mais de mil páginas, na própria mochila? Fecho as cortinas e, feliz por algumas horas, viajo nas páginas finas e deslizantes até ser carregada pelo sono para um outro lugar, aquele onde fica o umbigo do sonho, cuja localização exata ninguém sabe informar.

Em meio às flutuações, uma amiga, que parecia estar num lugar tão inacessível quanto o do umbigo de um sonho quase esquecido, reaparece e me conta - a voz dela ao telefone me fazendo sentir como se eu tivesse de novo catorze anos e estivesse ouvindo Blister in the Sun pela primeira vez nos fones de ouvido de um walkman - que por lá a maré também não está para peixe e que, para tentar explicar determinadas questões, ela costuma dizer que direitos não são como fatias de bolo que, quando distribuídas, acabam. Assim que desligamos, vou da felicidade à tristeza em poucos segundos. Fico feliz simplesmente por ela existir, por ser minha amiga e por todas as coisas que um dia vivemos juntas, e absolutamente melancólica por ter perdido tantos anos de outras coisas que ela viveu, sem mim, sem que eu soubesse. Sabe aquele livro, lindo, do Kasuo Ishiguro, Não me abandone jamais?

---

Ainda que a minha amiga não tivesse razão ou, usando a lógica da inversão ou a inversão da lógica, tanto faz, a pergunta é, ainda que direitos fossem como fatias de bolo, será que daria mesmo para ser feliz comendo o bolo inteiro, sempre, sozinho?


* Verso de Wave, de Antonio Carlos Jobim, Thalma Alyagon Roz e Roee Ben Sira.