Da minha avó sei mais fatos do que acontecimentos, como se entre nós houvesse existido sempre um mediador. E havia.
Sei que a vida a tirou de sua mãe ainda bebê, pegando-a com tamanho descuidado que a amassou irremediavelmente ao modo da crueldade, da tragédia e do drama.
Minha avó nunca foi lisa e entre nós as farpas eram abundantes. Ciúme, raiva, indignação eram o avesso do amor que eu sentia por ela (e ela por mim). Entre nós, os vivos e os mortos das nossas desavenças. Mesmo nos vãos das trincheiras onde de tempos em tempos nos achávamos encolhidas e ausentes das sombras de outros corpos, não encontrei a minha avó.
Ela cresceu entre freiras e não as suportava. Tampouco gostava de padres e de rezas. Nunca vi minha avó rezar e vibrava interiormente quando a ouvia dizer sem meias palavras o que pensava sobre a Igreja. Ela, aliás, nunca mediu palavras, fossem para os santos ou para os demônios. No último dia em que a vi com vida, só eu e ela, estávamos cercadas por uma ladainha religiosa e ela dizia, não sabem o que dizem, não sabem o que dizem. No seu velório, enquanto um padre proferia não sei quais palavras à cabeceira do seu corpo, eu só pensava em dizer, pare, ela não gosta. Mas não disse.
Sua altivez e suas palavras afiadas me irritavam, mas também me fascinavam. Quem era aquela criatura que estendia (ou pelo menos fazia tentativas incessantes de expansão) seu domínio sobre os espaços das casas e das almas? Quem era aquela mulher cuja mãe foi encarcerada num leprosário (como eram chamados os estabelecimentos de isolamento para os quais eram compulsoriamente enviadas as pessoas portadoras de hanseníase num passado não muito distante) e que cresceu sob os descuidados de estranhos, junto apenas de sua irmã um pouco mais velha, tão diferente dela e que veio a ser essencialmente fundamental na minha vida? O que ela já havia feito com o corpo da mulher que era a minha avó? O que a açoitava nos inúmeros momentos de pânico que a acometiam? O que ela pensava para além dos fios do tricô tecido com a trama dos noticiários e das novelas de rádio e televisão?
Nas fotos a minha avó, jovem, era bonita. Ouvi que era vaidosa, cabelo sempre arrumado, que pintava as unhas de vermelho e botava calças num tempo em que as cunhadas que moravam no interior só usavam saias. Interior para o qual ela mudou, não por vontade própria, e ficou.
Das vontades mesmas da minha avó eu não sei e desconfio que estiveram sempre aquebrantadas. Talvez a força da mão da vida que a agarrou tenha sido tão grande que com a pressão formaram-se sob a sua pele fina de criança dobras nas quais um desamparo excruciante tomou morada. Fico pensando se o ferro das palavras poderia alisar o tecido esmagado pela angústia e volvê-lo em superfície propícia para o deslizamento do desejo.
Ao contrário da minha avó, que sobreviveu como pôde às palavras separação, abandono e indiferença, eu tenho a chance de suportar as palavras insuportáveis falando e escrevendo sobre elas. Mais, ainda. Eu tenho a chance de fazer da minha avó, morta, em palavras escritas para sempre vivas.
Das vontades mesmas da minha avó eu não sei e desconfio que estiveram sempre aquebrantadas. Talvez a força da mão da vida que a agarrou tenha sido tão grande que com a pressão formaram-se sob a sua pele fina de criança dobras nas quais um desamparo excruciante tomou morada. Fico pensando se o ferro das palavras poderia alisar o tecido esmagado pela angústia e volvê-lo em superfície propícia para o deslizamento do desejo.
Ao contrário da minha avó, que sobreviveu como pôde às palavras separação, abandono e indiferença, eu tenho a chance de suportar as palavras insuportáveis falando e escrevendo sobre elas. Mais, ainda. Eu tenho a chance de fazer da minha avó, morta, em palavras escritas para sempre vivas.
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