sábado, 10 de agosto de 2024

Twist in my sobriety

Mas tá um pouco apaixonada? Tem que estar, né, baby, senão não tem graça. Uma paixonite pelo menos, vai? Olho para a frente e depois para o lado fazendo a curva à direita e deixando a Avenida Ipiranga para trás. Engasgo, respondo, não sei se sou sincera. Paixão, paixonite, amor, qual é a diferença entre essas palavras?

A frase diz em voz alta, gravava cartas de amor em vinil, era nítido que estava muito apaixonado. Mas as cartas eram de amor ou de paixão? Enquanto a água escorre e leva a espuma que recobre as facas que seguro sob o jato d’água, deixo escapar em voz baixa, quais são as palavras que alguém usa para dizer eu te amo?

Toda nudez será castigada e no entanto eu me sinto absolutamente impune dentro da minha, exceto pelo espelho muito quadrado que me olha do alto como um juiz, como o duplo que me olhava de cima, imóvel, na diagonal de um dos cantos da biblioteca excessivamente iluminada onde eu lia O Livro Azul.

As suas roupas são predominantemente pretas e cinza, como as minhas, e estou de volta às imediações da Avenida Ipiranga depois de uma caminhada em linha reta pela Higienópolis. No verso da Maria Antônia seus braços, peito e boca são quase uma poesia, exceto pelo que não é. Árido Movie, você assistiu? As câmeras ao nosso redor nos observam inertes de dentro de suas capas. Veja como pesa. Seguro uma delas com as duas mãos e tudo o que vejo é movimento, o Vietnã se abrindo em imagens e palavras, um livro. E depois? Depois seguir e não voltar, fantasia de quem só se sente real em outras realidades, de quem sente o radical da alteridade como um remédio.

O livro que você me entrega é quase tão pesado quanto as suas câmeras e as histórias que ele abriga saltam das páginas para a mesa de um restaurante peruano barato no centro de São Paulo. Certa vez vi um rato passeando por entre as mesas mas não me importei. Lembro do rato e sigo sem me importar. Só o que me interessa são as crianças que nunca veem o sol e a bailarina que são duas, uma que sorri abertamente longe da casa em que cresceu e outra que é triste perto dela. Por cima da mesa o meu olhar engole as Américas que surgem nas suas palavras da mesma maneira que os seus olhos me mastigam quando você me vê andando nua pelo apartamento minúsculo em direção ao banheiro ou desfilando pela sala da sua casa, escova de dentes elétrica em punho. Deixo claro que tenho duas delas e você ri ainda mais, como uma criança que se diverte com um brinquedo novo.

O nosso jogo é uma brincadeira de criança em corpo de adulto onde só não entram os joguinhos infantis. I Drove All Night no repeat intercalada com a sua voz, chamadas telefônicas como as que fazíamos quando éramos adolescentes. Dirijo mais de uma noite assim, numa ligação com você, mas chego mais tarde do que o esperado e não consigo olhar para aquilo que em você é tão diferente do seu corpo. Você de fato poderia me esmagar como a um brinquedo que não se quer mais, mas no fim sou eu quem não consegue segurar aquilo que o peso das suas câmeras não revela. Só as lentes.

Eu sei que eu te machuquei.


O tempo, lógico.

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