Tenho sonhos elétricos, o pai diz à filha, a movimentação no entorno da mesa à qual estão sentados intensificando a necessidade de foco do espectador na cena que se desenrola no primeiro plano.
E você, quais são os seus sonhos?
Acordo e percebo que algo havia se perdido. Tive um sonho ruim, falo, enquanto conto com palavras as imagens que me fizeram acordar angustiada, aliviada, foi apenas um sonho.
Ruas escuras, muros altos, vielas, labirinto. Outro sonho, cabeças e cabelos cobertos, rostos apreensivos. Procuro, não tem saída. Eu vou arrebentar a sua boceta, diz a legenda, traduzindo o intraduzível. Quem inventou as palavras? Como foi que elas vieram parar nas nossas bocas? Paradoxos do enlouquecimento, elas parecem nunca estar à toa, nunca ser à toa.
A minha casa é dos meus filhos, não é lugar para levar mulher, e os meus olhos se fixam com mais atenção na cena para depois se desviarem do resto do filme. Muito barulho por nada seria um bom título para ele, penso, enquanto os resquícios do áudio derramam uma cagação de regra que levanta uma parede de certezas em dry wall - alvenaria é luxo de outros tempos -, mas aquele título já foi usado há centenas de anos, no século dezesseis, salvo engano, por um texto, esse sim, contemporâneo.
Tenho uma amiga muito poderosa na vida que pelo menos na cama quer ser mulher, ou seja, estar abaixo do homem. Suspendo a respiração para ler com atenção até constatar que é isso mesmo o que está escrito. Inspiro, expiro pela boca, uma, duas, três, quatro vezes. Mas que legenda é essa? De qual roteiro saiu essa lógica? Quem escreveu esse filme longo, repetitivo e chato? Lippy e Hardy, o desenho, penso nele sem parar. A hiena que, ao invés de rir, passa os dias a se lamentar, a se ressentir.
O melhor o tempo esconde, longe, muito longe, mas bem dentro aqui, a voz do Caetano muito alta reverbera dentro do carro, os rastros deixados pelos meus pensamentos marcando o tempo que fica na estrada, Trilhos Urbanos que sucedem uma Elegia, nudez total, todo prazer provém do corpo, como a alma sem corpo, sem vestes, como encadernação.
No final das contas somos vazos preenchidos por vazios de tempo e por palavras que entregam todas as nossas sementes. Aniquilação, destruição, desprezo, humilhação. Medo, ressentimento. Mas do quê? O esforço constante, eterno, derrapante das palavras. Exceto quando cortam, como facas. Annie Ernaux, Virginia Woolf, a recusa da escrita como feminina ou masculina; Cixous, o contraponto. Inspiro e expiro pela boca novamente. Estou cansada. Não sou homem nem mulher, sou gente, e também sou bicho. É assim que eu escrevo, é assim que eu vivo. Gente, como qualquer outra mulher.
O problema é que eles não sabem ler.
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