O vestido florido no final, a rua escura no começo. O perdão é mesmo o lugar dos contrastes. Eu não pensava assim, ou pelo menos não com essas palavras, quando falei com você pela primeira vez sobre Tre Piani. O perdão como o lugar do imperdoável, ouvi uma escritora, a Carla Madeira, dizer numa entrevista, mas de outro jeito. Ela disse outra coisa, que em mim saiu diferente, agora, ao escrever. Tudo sai melhor de mim quando escrevo, de forma que às vezes chego a pensar em nunca mais abrir a boca.
É também um filme sobre o perdão, eu falei. O único problema é que a arte imita a vida, mas a vida não imita a arte. Na vida tudo é mais difícil, mais duro, e muitas vezes não há como conversar. Então hoje, passados mais de dois anos da primeira vez que vi o filme, ouvi novamente a entrevista da escritora, o perdão como o lugar do imperdoável, o imperdoável como aquilo para o qual não há conversa que resolva. Ouvi e entendi pois, assim como o filme, eu comecei essa análise muito mais escura, turva, embaralhada, quase embalsamada, de tão mortas algumas partes de mim, a do perdão completamente enterrada, a da esperança e a da confiança perdidas como um náufrago que se vê destituído de sua embarcação. Agora tudo é mais flat, eu disse recentemente, estranhando as sessões, estranhando a mim mesma, estranhando o perdão. Assisti Tre Piani novamente, eu falei, e ultimamente tenho me policiado para não girar o tronco na sua direção para olhar nos seus olhos enquanto falo, para me manter reta no divã, encarando aquele quadro que a cada sessão me diz uma coisa diferente e os livros que querem me dizer tudo, sinto vontade de levantar e puxar alguns da estante, tê-los ao meu alcance, sobre o meu colo, cobrindo o meu ventre, as minhas coxas, vi Tre Piani e dessa vez pensei diferente (ainda teimo em chamar sentimento de razão), pensei que a arte imita a vida e que a vida pode sim imitar a arte.
Na primeira vez eu mal percebi a lei que atravessa a tela a quase todo instante, o processo que é usado como remédio e também como marcador do tempo. Freud amava os escritores e a mim me parece muito claro o porquê. Em Não fossem as sílabas do sábado, a protagonista criada por Mariana Salomão Carrara diz que quando se está com muita raiva de alguém ou não se consegue sentir mais nada, ou ambas as coisas, nada é mais eficiente do que iniciar um processo e eu penso em todas as dores, frustrações, mágoas, em todo o desprezo e em toda a indiferença que já circularam pelas folhas e pelos corredores do poder judiciário, as varas de família, em especial, fazendo o que podem para remediar, de forma mais ou menos capenga, a nossa falta de jeito para nos relacionarmos com os outros e para lidarmos com nós mesmos.
Nanni Moretti disse, numa entrevista, que o escritor israelense Eshkol Nevo, autor do livro homônimo do qual Tre Piani foi adaptado, declarou, após assistir ao filme, que ele esperava e cria que aquele filme corajoso permitisse aos que o vissem perdoarem a si mesmos e aos outros e eu penso que isso vale para o filme todo e não só para Lucio, o personagem que centraliza a questão do abuso sexual levantada no filme.
O processo que se instaura em razão do ocorrido entre ele e Charlotte, a neta de seu vizinho Renato, a quem Lucio imputava um suposto abuso da sua filha Francesca, parece transcender a esfera judicial e funcionar como o instrumento que a protagonista de Não fossem as sílabas do sábado descreve, essa coisa que vai lentamente sugar e arrogar para si as desavenças e traduzi-las numa língua que quase não é a sua. No filme, o luto de Giovanna, esposa de Renato, os sentimentos da mãe de Charlotte e a rejeição sofrida por esta são despejados num processo cujo julgamento é o marco do final dos primeiros cinco anos do filme, o qual, ao todo, soma dez. Tal extensão no tempo não existe no livro de Eshkol Nevo, tendo sido introduzida no filme por Nanni Moretti, e eu penso que o interessante aqui talvez seja o fato de que da mesma forma que um processo tem seus ritos e tramitações próprios, com prazos contados em medidas de tempo, a estrutura de Tre Piani é montada sobre acontecimentos de vida e de morte, os quais funcionam como marcos temporais que acometem a todos nós e que nos fazem sentir a passagem do tempo. Antes e depois, divisores de águas.
Uma mulher grávida prestes a parir que é posta em cena atravessando a noite em busca de ajuda para ir até o hospital enquanto um carro em alta velocidade é freado por uma parede, não sem antes matar uma pessoa. Entra em cena a lei, os pais do motorista Andrea, Vittorio e Dora, ambos juízes, ele, no dizer de Nanni Moretti, o personagem que usa a máscara da integridade moral, da lei. Dora, a meu ver, a personagem mais interessante do filme e aquela à qual eu mais me afeiçoei. A rigidez do pai com o filho, o espancamento daquele por este, a escolha imposta a Dora, a escolha que ela faz, as consequências. A morte de Vittorio, marcando mais uma vez a passagem do tempo, dez anos, o encontro de Dora com Luigi, o reencontro dela com Andrea. A minha cena preferida, Dora dentro de um carro telefonando para o número de telefone de sua casa e falando com o marido morto por intermédio da secretária eletrônica, por que, ao longo da vida, nós não nos permitimos mais, ela ouve o bip do aparelho e desliga, mais de uma vez faz isso, como se não fosse possível falar com Vittorio sem um intermediário, como se não fosse possível seguir falando, escutando, sozinha, a própria voz.
Monica, a mulher grávida do início do filme, a solidão, o medo da repetição da loucura da própria mãe. A entrada de Dora em sua casa no momento do primeiro banho da bebê, Monica lhe dizendo que com ela ali as coisas pareciam mais reais, e eu me vejo na cena, sem um terceiro, sem um olhar, sem o outro, a realidade fica inefável, insustentável demais para ser real. Monica e o grande pássaro negro, Monica que sonha, delira, alucina, o cunhado, o sexo, a ausência quase permanente do marido, a segunda filha, será que eu vou conseguir, e ela enlouquece. Enlouquece? Ainda não consigo dissociar a sua loucura da liberdade da dança, da música, da festa que invade os cômodos do prédio de três andares e coloca os seus moradores em outra perspectiva, na rua, como observadores, como pessoas alheias às suas próprias realidades por algum tempo.
Dora, de novo ela, a morte de Vittorio abrindo uma janela para outras formas de vida, para as cores, para o amor. É muito difícil amar com rigidez, venho aprendendo, e Dora me lembra a minha mãe, o que só agora, escrevendo, percebo. A minha mãe diz, que vestido deslumbrante, e no final Dora aparece, solar, com o vestido florido, deslumbrante. O filme termina e pela segunda vez eu me emociono, sem saber de que lugar vem o choro.
O imperdoável, o lugar do perdão.
É também um filme sobre o perdão, eu falei. O único problema é que a arte imita a vida, mas a vida não imita a arte. Na vida tudo é mais difícil, mais duro, e muitas vezes não há como conversar. Então hoje, passados mais de dois anos da primeira vez que vi o filme, ouvi novamente a entrevista da escritora, o perdão como o lugar do imperdoável, o imperdoável como aquilo para o qual não há conversa que resolva. Ouvi e entendi pois, assim como o filme, eu comecei essa análise muito mais escura, turva, embaralhada, quase embalsamada, de tão mortas algumas partes de mim, a do perdão completamente enterrada, a da esperança e a da confiança perdidas como um náufrago que se vê destituído de sua embarcação. Agora tudo é mais flat, eu disse recentemente, estranhando as sessões, estranhando a mim mesma, estranhando o perdão. Assisti Tre Piani novamente, eu falei, e ultimamente tenho me policiado para não girar o tronco na sua direção para olhar nos seus olhos enquanto falo, para me manter reta no divã, encarando aquele quadro que a cada sessão me diz uma coisa diferente e os livros que querem me dizer tudo, sinto vontade de levantar e puxar alguns da estante, tê-los ao meu alcance, sobre o meu colo, cobrindo o meu ventre, as minhas coxas, vi Tre Piani e dessa vez pensei diferente (ainda teimo em chamar sentimento de razão), pensei que a arte imita a vida e que a vida pode sim imitar a arte.
Na primeira vez eu mal percebi a lei que atravessa a tela a quase todo instante, o processo que é usado como remédio e também como marcador do tempo. Freud amava os escritores e a mim me parece muito claro o porquê. Em Não fossem as sílabas do sábado, a protagonista criada por Mariana Salomão Carrara diz que quando se está com muita raiva de alguém ou não se consegue sentir mais nada, ou ambas as coisas, nada é mais eficiente do que iniciar um processo e eu penso em todas as dores, frustrações, mágoas, em todo o desprezo e em toda a indiferença que já circularam pelas folhas e pelos corredores do poder judiciário, as varas de família, em especial, fazendo o que podem para remediar, de forma mais ou menos capenga, a nossa falta de jeito para nos relacionarmos com os outros e para lidarmos com nós mesmos.
Nanni Moretti disse, numa entrevista, que o escritor israelense Eshkol Nevo, autor do livro homônimo do qual Tre Piani foi adaptado, declarou, após assistir ao filme, que ele esperava e cria que aquele filme corajoso permitisse aos que o vissem perdoarem a si mesmos e aos outros e eu penso que isso vale para o filme todo e não só para Lucio, o personagem que centraliza a questão do abuso sexual levantada no filme.
O processo que se instaura em razão do ocorrido entre ele e Charlotte, a neta de seu vizinho Renato, a quem Lucio imputava um suposto abuso da sua filha Francesca, parece transcender a esfera judicial e funcionar como o instrumento que a protagonista de Não fossem as sílabas do sábado descreve, essa coisa que vai lentamente sugar e arrogar para si as desavenças e traduzi-las numa língua que quase não é a sua. No filme, o luto de Giovanna, esposa de Renato, os sentimentos da mãe de Charlotte e a rejeição sofrida por esta são despejados num processo cujo julgamento é o marco do final dos primeiros cinco anos do filme, o qual, ao todo, soma dez. Tal extensão no tempo não existe no livro de Eshkol Nevo, tendo sido introduzida no filme por Nanni Moretti, e eu penso que o interessante aqui talvez seja o fato de que da mesma forma que um processo tem seus ritos e tramitações próprios, com prazos contados em medidas de tempo, a estrutura de Tre Piani é montada sobre acontecimentos de vida e de morte, os quais funcionam como marcos temporais que acometem a todos nós e que nos fazem sentir a passagem do tempo. Antes e depois, divisores de águas.
Uma mulher grávida prestes a parir que é posta em cena atravessando a noite em busca de ajuda para ir até o hospital enquanto um carro em alta velocidade é freado por uma parede, não sem antes matar uma pessoa. Entra em cena a lei, os pais do motorista Andrea, Vittorio e Dora, ambos juízes, ele, no dizer de Nanni Moretti, o personagem que usa a máscara da integridade moral, da lei. Dora, a meu ver, a personagem mais interessante do filme e aquela à qual eu mais me afeiçoei. A rigidez do pai com o filho, o espancamento daquele por este, a escolha imposta a Dora, a escolha que ela faz, as consequências. A morte de Vittorio, marcando mais uma vez a passagem do tempo, dez anos, o encontro de Dora com Luigi, o reencontro dela com Andrea. A minha cena preferida, Dora dentro de um carro telefonando para o número de telefone de sua casa e falando com o marido morto por intermédio da secretária eletrônica, por que, ao longo da vida, nós não nos permitimos mais, ela ouve o bip do aparelho e desliga, mais de uma vez faz isso, como se não fosse possível falar com Vittorio sem um intermediário, como se não fosse possível seguir falando, escutando, sozinha, a própria voz.
Monica, a mulher grávida do início do filme, a solidão, o medo da repetição da loucura da própria mãe. A entrada de Dora em sua casa no momento do primeiro banho da bebê, Monica lhe dizendo que com ela ali as coisas pareciam mais reais, e eu me vejo na cena, sem um terceiro, sem um olhar, sem o outro, a realidade fica inefável, insustentável demais para ser real. Monica e o grande pássaro negro, Monica que sonha, delira, alucina, o cunhado, o sexo, a ausência quase permanente do marido, a segunda filha, será que eu vou conseguir, e ela enlouquece. Enlouquece? Ainda não consigo dissociar a sua loucura da liberdade da dança, da música, da festa que invade os cômodos do prédio de três andares e coloca os seus moradores em outra perspectiva, na rua, como observadores, como pessoas alheias às suas próprias realidades por algum tempo.
Dora, de novo ela, a morte de Vittorio abrindo uma janela para outras formas de vida, para as cores, para o amor. É muito difícil amar com rigidez, venho aprendendo, e Dora me lembra a minha mãe, o que só agora, escrevendo, percebo. A minha mãe diz, que vestido deslumbrante, e no final Dora aparece, solar, com o vestido florido, deslumbrante. O filme termina e pela segunda vez eu me emociono, sem saber de que lugar vem o choro.
O imperdoável, o lugar do perdão.
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