segunda-feira, 16 de junho de 2025

Pequenas Coisas Como Estas

Para Sempre Lilya é o nome do filme que eu vinha tentando lembrar. Dei de cara com ele nas páginas de O amigo, livro de Sigrid Nunez, no qual a protagonista, ao falar com seu amigo suicida, discorre sobre assuntos diversos. A uma certa altura do romance é mencionada uma oficina literária oferecida a mulheres que estavam num abrigo para vítimas de escravidão sexual. (Enquanto escrevo me pergunto, uma vítima de escravidão sexual algum dia deixa de sê-lo?) É nesse ponto do livro que Sigrid menciona Para Sempre Lilya, o filme mais triste que já vi na vida, assim como é também nessa parte do romance que deparo com outra palavra que de alguma forma eu andava buscando, uma palavra que pudesse carregar o sentido do que eu havia sentido ao reler, por aqueles dias, A feminilidade, texto escrito por Freud em 1933.


Humilhação.


Um homem, seja ele quem for, jamais vai saber o que uma mulher sente. Virginia Woolf, Hélène Cixous, elas sabiam, e sabiam do que se tratava quando nos diziam para escrever. Mulheres, escrevam, como um imperativo, uma possibilidade.


Sigo estranhando a escrita masculina, que me soa chata e entediante com mais frequência do que eu gostaria. Abandono romances, retomo alguns. Paul Auster, A invenção da solidão, foi deixado de lado por um tempo. Felizmente o retomei. Édouard Louis, uma exceção. Fico completamente tomada pelo seu ritmo, encorajada pelo seu método. Uma exceção.

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Ela já havia tido três filhos quando engravidou do quarto. O primeiro deles, S., morreu logo após nascer (ou talvez tenha nascido morto). Ao engravidar pela quarta vez, não desejava ter mais um filho; é inclusive provável que nunca tenha de fato desejado ter algum. Mas será que alguma vez ela teve a oportunidade de saber o que desejava para si?

Contou ao marido que estava grávida e que não ia ter o bebê. Uma cunhada do interior sabia de um médico que resolvia essas questões e o dia e o horário já estavam agendados, ela iria se livrar daquilo, eles iriam se livrar, ao que o marido respondeu que não a acompanharia, que ele não poderia levá-la. Ele jamais a levaria.

No dia marcado, ela tomou a menina, caçula, e o menino mais velho pelas mãos e saiu de casa. Por que nós vamos de ônibus para a casa da tia G., mãe? Porque o seu pai não pode nos levar, ele está trabalhando. Ao desembarcarem na rodoviária da pequena cidade, ao contrário das expectativas das crianças, que imaginavam que seu destino seria um lugar familiar, rumaram num táxi para o consultório do médico, onde a menina e o menino foram deixados na sala de espera, um relógio de parede emitindo o ruído das horas, as mãos da menina se abrindo e se fechando sobre o sofá grosseiro, duro como as paredes que sustentavam quadros onde se viam cenas campestres emolduradas por madeira cor de mogno, os dedos falhando na tentativa de se agarrarem a algo.

Décadas mais tarde, a menina conta o ocorrido para a sua filha, uma mulher para a qual a ideia de engravidar sempre soou estranha. A filha imagina se o aborto foi feito como em O acontecimento - livro no qual Annie Ernaux relata a experiência dolorosa e praticamente indizível de um aborto que lhe aconteceu na juventude, quando a França, país onde vivia, ainda proibia a prática - ou de outra forma. Imagina o que passava pela cabeça da avó quando estava no ônibus, com duas crianças, a caminho de uma cidade do interior, e o que ela pensou e sentiu depois de sair do consultório. Ao imaginar, a filha escreve, podendo agora se agarrar a alguma coisa.

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A minha avó era um bebê quando foi levada para um internato de freiras, junto da sua irmã, pouco mais velha que ela. A mãe delas, acometida pela hanseníase, havia sido encarcerada num hospital, no qual, anos depois, viria a morrer, sem nunca ter saído de lá. O pai das meninas, meu bisavô, prontamente se casou com outra mulher e, dos três filhos que havia tido com a minha bisavó, ficou somente com o mais velho, um homem. 
 
Minha tia-avó se tornou ateia; minha avó odiava freiras, ou o que elas representavam, com todas as suas forças. Cresci ouvindo as duas relatarem algumas das coisas que haviam visto e vivido no internato e, das frases que ficaram na minha memória, a que me veio agora, enquanto escrevo, na voz da minha tia H. é “as freiras não tinham coração”. 
 
Já ao terminar de assistir Pequenas Coisas Como Estas, filme adaptado do romance homônimo de Claire Keegan que aborda a questão das atrocidades ocorridas nas lavanderias de Madalena na Irlanda, a imagem que imediatamente me veio à mente, junto com os créditos do filme, foi minha avó. Duas palavras formando uma imagem corrida, por extenso. E depois, a do internato, que  não conheci, somente imaginei a partir das palavras que me foram ditas.

Minha tia H., que quando criança teve o mesmo destino da irmã, talvez pelos tantos livros que ocupavam as suas paredes de adulta e pela sua inteligência apurada, sempre me pareceu mais forte do que a minha avó; ou talvez não fosse a inteligência, mas a sensibilidade, a afetividade que nos dirigia, a nós, sobrinhas e sobrinhos, a maneira como se derretia conosco e com qualquer outra criança, a forma como sentia compaixão pelas pessoas, que, paradoxalmente, a fizessem parecer mais forte, mais coesa, mais humana. Tia H. era muito diferente da minha avó, que gostava de me presentear com brinquinhos de ouro, bolinhos de espinafre, doce de abóbora sem coco e farpas, muitas farpas. Dois bicudos não se bicam, ela dizia. Nós não nos bicávamos e pouco nos afagávamos. E ainda assim, por todos os outros motivos do mundo, são essas as duas palavras que mais me fazem falta.

Minha avó.

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