Tenho estado ocupada demais comigo mesma, chocada e maravilhada em demasia com as mudanças, nada lentas e graduais, que me acometem no momento. Você está na menopausa, a minha ginecologista me diz, olhando o resultado da repetição dos exames. Menopausa, eu? Não pode ser. A minha mãe tinha cinquenta e tantos anos quando entrou na menopausa e eu tenho quarenta e seis. Não é possível. Com essa taxa hormonal é possível sim. Você está na menopausa. Com esse veredicto, a médica declarou o início da minha nova vida, ou seja, a de uma mulher que está envelhecendo, ou melhor, que está sentindo na pele, nos ossos, nos músculos e no cérebro os efeitos do envelhecimento e fazendo o possível para lidar com eles da melhor forma, o que significa dedicar tempo e recursos, principalmente financeiros, para tornar a situação menos desesperadora.
Nesse aspecto, a propósito, a dureza do envelhecimento e o fato de haverem várias velhices, a depender da condição socioeconômica de quem envelhece, ficam ainda mais patentes quando penso que eu, na condição de uma mulher privilegiada, posso lançar mão de médicos, nutricionistas, fisioterapeutas, suplementos, medicamentos, comida de boa qualidade, exercícios físicos diversos etc. para de alguma forma remediar o irremediável. Mas e quem não pode? E quem não tem acesso a isso tudo?
Num primeiro momento, senti uma mistura de culpa, vergonha, medo e ressentimento. Culpa por achar que meu corpo havia falhado, que era cedo demais para envelhecer e que talvez eu tivesse feito algo errado, algo que tivesse contribuído para esse envelhecimento imaginariamente precoce; culpa também por estar bastante preocupada com isso, por estar dedicando tempo e dinheiro a essa questão pessoal quando, como dito acima, a maioria das mulheres do planeta não podiam se dar a esse luxo. Vergonha por ter supostamente falhado na missão de ser jovem para sempre, por, de acordo com a ginecologista, estar com uma osteopenia fodástica, pelo meu assoalho pélvico, junto dos meus hormônios, estar despencando. Medo do fim, do fim de tudo. Mais medo de morrer. Quer dizer então que acabou, eu me perguntava. Acabou tudo? É o fim da vida como eu a conhecia? Existe vida depois da menopausa? Se existir, qual é o tipo de vida que se vive depois desse acontecimento? Ressentimento pois, após devorar livros, podcasts e artigos, e de bombardear as minhas amigas, a minha mãe e as amigas dela com uma série de perguntas, concluí que muitos dos sofrimentos físicos e psíquicos pelos quais passei nos últimos cinco anos muito provavelmente tinham relação direta com a perimenopausa. Só que isso ninguém me contou antes.
Paradoxalmente, passado um breve período de tempo após o choque causado pela notícia que marcou o fim da minha vida como eu a conhecia até então, mais precisamente parte da atual estação do ano, ou seja, do inverno no hemisfério sul, eu me peguei em paz, em poesia e em liberdade, tomada pelo desejo de um novo projeto, encaixada como nunca antes. De repente senti, a posteriori (como não poderia deixar de ser), o clique de algo que se encaixou. Mais ou menos como se um aglomerado de pessoas confusas, barulhentas e ansiosas tivessem finalmente conseguido se organizar em linha, não necessariamente uma atrás da outra, mas uma ao lado da outra, cada uma no seu melhor lugar, todas mais calmas, mais silenciosas, menos ansiosas. Todas com um livro nas mãos.
Acho curioso tudo isso estar acontecendo ao mesmo tempo e venho passando dias maravilhada com não sei bem o quê. Comecei então a perceber que a minha análise, aquele momento pelo qual eu esperava toda semana com muita ansiedade, não andava mais surgindo como uma necessidade assim tão premente. Pensei a respeito e decidi perguntar para a minha analista, pela primeira vez em muitos anos (ao longo dos quais, exceto em alguns períodos de férias, nunca perdi uma sessão), se ela achava que seria possível passarmos a nos encontrar de quinze em quinze dias. Ao que, para minha surpresa, ela respondeu, claro que sim! É que estamos juntas há muito tempo, de maneira que podemos fazer de quinze em quinze até você parar. Parar? Se acalme, eu disse a ela, rindo, a risada disfarçando o choro que vinha de um lugar que ainda não sei definir, provavelmente do espaço que um dia foi ocupado pelo mais absoluto desamparo, que agora deixou de ser tão absoluto assim.
Dois dias antes de expressar meu desejo para a minha analista, vi um comentário deixado em uma das publicações deste blog, o qual não publiquei (nenhum comentário é postado sem a minha mediação). Nele, um homem que conheci há muitos anos se dirige a mim como se eu ainda estivesse no colegial, onde ele foi meu professor. Ele diz que espera o meu texto sobre o Ozzy, o Osbourne, morto recentemente, do qual eu há trinta anos realmente gostava muito. Há trinta anos. O homem aparentemente se dirige a mim com alguma intimidade, como se me conhecesse, como se algum dia realmente tivesse me conhecido intimamente, como se eu ainda fosse uma presa fácil, uma adolescente supostamente encantada pelo professor dez anos mais velho, casado, que se achava o bonitão da bala Chita e que não economizava esforços na hora de jogar charme para a(s) aluna(s).
Entre a visualização do comentário e a sessão de análise, tenho um sonho “em níveis”. É como se o sonho em si fosse uma coisa concreta, um edifício, uma estrutura física, com níveis. Eu passo de um andar a outro, não há paredes, o sonho edifício flutua. Como um móbile. Há outras pessoas ali, não sei quem são, talvez sejam bonecos ao invés de pessoas, talvez sejam dançarinos, sombras que se movimentam. Acordo com a frase “no adro da Fundação Casa de Jorge Amado” e o restante de Haiti, música de Caetano Veloso e Gilberto Gil, se desenrolando na minha cabeça. Levanto, vou até o banheiro e, enquanto o meu xixi escorre vaso sanitário abaixo, penso na primeira frase, “no adro da Fundação Casa de Jorge Amado”. Desse professor certa vez ganhei um CD do Caetano que tinha essa música; há décadas trabalhei no que agora é a Defensoria Pública do Estado de São Paulo e também em ONGs que atendiam adolescentes infratores e, nesse período da minha vida, inúmeras vezes fui à Febem, hoje Fundação CASA, onde vi, conversei, atendi e defendi adolescentes espancados e queimados. Foi um período difícil, sobre o qual já escrevi um pouco, um tempo em que eu sonhava quase todas as noites com os espancamentos.
Conto o sonho para a minha analista; não foi um sonho de angústia, não foi ele que me fez acordar. Mas o sonho tem a ver com o comentário do professor, eu sei disso, digo a ela. Conto também que senti asco e incômodo ao deparar com aquele lembrete de algo que eu prefiro esquecer num lugar que, apesar de compartilhado, é meu. Mais uma vez, me senti invadida, assim como aconteceu quando, na véspera de um Natal, essa criatura apareceu na porta da minha casa acompanhado do cunhado! A posteriori, a presença daquele homem em forma de provocação para que eu escrevesse sobre algo que ele julgava ainda ser relevante para mim me fez perceber que naquela época eu também sentia asco e incômodo (revividos agora), os quais não sabia nomear. Não sabia organizar os meus sentimentos, tampouco entendia a situação. Eu me imaginava talvez apaixonada pelo professor, outros me diziam isso, mas a verdade é que nunca estive realmente apaixonada por ele. Naquela época namorei outras pessoas e, naquele mesmo período, a esposa do tal professor (e eu sinto muito por ela ter passado por essa situação) descobriu uma carta de amor escrita por ele para mim. Não sei se cheguei a ler a carta. Não lembro. Uma pessoa me disse que aquilo havia sido um ato falho da parte dele e me perguntou o que eu ia fazer. Fiquei surpresa com a pergunta e respondi, nada. Eu nunca tive qualquer intenção de ficar com aquela pessoa casada e dez anos mais velha do que eu. A bem da verdade, nunca tive a menor intenção de ficar “para sempre” com qualquer uma das pessoas que namorei no colegial, exceto uma, que não quis ficar comigo. E ponto. Quando eu já morava em outra cidade e estava no primeiro ano da faculdade, esse professor quis ir até mim. Nos encontramos num parque que eu nunca frequentava e que hoje me pergunto, por que naquele parque? Não lembro o que foi dito, lembro apenas de um bilhete, um verso de uma música. Lembro do asco que senti. Dele, de mim, não sei ao certo. Nunca mais nos vimos ou nos falamos, até ele me encontrar numa rede social da qual não faço mais parte, até ele, pela segunda vez, ousar comentar algo num texto meu num tom de suposta intimidade.
Tudo isso para dizer que a impressão que eu tenho é a de que esse homem nunca me viu. Assim como outros que passaram pela minha vida, o tal professor jamais me viu de verdade. Ele nunca enxergou o meu desconforto, o meu asco. Aparentemente ele também não via a própria esposa. E aqui não dá pra deixar de citar Caetano novamente, quando ele diz que “Narciso acha feio o que não é espelho”.
Para jogar mais lenha na fogueira, um livro vem me fazendo pensar tremendamente no meu pai e no meu ex-companheiro, com quem vivi durante cinco anos. Meu pai, o homem mais egoísta que conheci na vida; meu ex, o segundo homem mais egoísta com o qual convivi (houve outros depois, claro, mas desses eu fugi rapidinho). Conto para a minha analista que Philippe Toussaint, um personagem de Água fresca para as flores, de Valérie Perrin, me faz lembrar do meu ex, ao que ela responde, pesado, hein? Sim, pesado. Sigo a leitura e agora percebo mais fortemente o meu pai no mesmo personagem. Também passo a ver a minha mãe no lugar de Violette, a protagonista da história, e a mim mesma. Das muitas coisas que eu percebo, a principal é o fato de que, assim como Philippe Toussaint não via Violette, sua esposa, meu pai jamais viu a minha mãe (que inclusive sempre foi areia demais para a carrocinha dele, em todos os sentidos), assim como meu ex-companheiro nunca, mas nunquinha mesmo me enxergou, sendo essa realidade muito mais comum e sintomática do que possa parecer. Basta deixar o celular de lado e olhar ao redor (muitas vezes dentro da sua própria casa).
Desde que me separei, voltei, evidentemente, a me envolver com homens que não me viam ou que eventualmente me viam como uma possível mãe (o que dá na mesma), já que esse parece ser um dos meus clichês amorosos; por muito tempo, sofri com a ansiedade, a falta de ar e o desespero advindos de uma sensação de total rejeição, de absoluto desamparo. Até o dia em que, entre braçadas dadas em uma das raias laterais da piscina (prefiro as centrais, de forma que evito as duas laterais extremas, as que beiram as paredes), a falta de ar derivada de uma decepção amorosa recém-sofrida apareceu como outra coisa. Não era aquela pessoa, não era aquela relação. Era outra coisa, outra pessoa, outra (não) relação. Era e sempre tinha sido aquele homem que, lá atrás, não nos via, nem a mim, nem à minha mãe. O resto não importava, era só repetição, o gozo insaciável da pulsão de morte, esse algo além do princípio do prazer, essa coisa que silenciosamente destrói vidas enquanto faz as nossas engrenagens girarem eternamente em falso.
E essa pessoa com quem você ficaria, onde está, me pergunta a analista. Não sei. Provavelmente morando em algum outro país, fazendo o décimo quinto pós-doc da vida, lendo, escrevendo, enfim, vivendo. Melhor não saber. Melhor não saber? Fico pensando na pergunta e entendo, depois, que sim, melhor não saber, pois essa pessoa não é mais aquela que um dia eu namorei, assim como eu também não sou a pessoa que ele namorou. Hoje, somos absolutos estranhos um para o outro, e não há fantasia nem mistério algum a respeito disso. É como as coisas são e pensar de outra forma seria cometer o mesmo erro do professor, o bonitão da bala Chita que segue vida afora repetindo, repetindo, repetindo.
O fim da tarde se aproxima e hoje o dia estava lindo. É domingo e, ao contrário do habitual, me autorizei a não ir à academia. Pela manhã, observei a luz entrando pelas janelas da sala de maneira a permitir o reflexo das folhas dos grandes vasos do jardim na tela da televisão. Olhei para uma faixa de luz que se destacava no ambiente e só não a toquei por receio de dissipar, prematuramente, a delicadeza daquele instante. Tomei o café da manhã, minha refeição preferida, devagar, aproveitando cada gole, cada garfada. Li um romance, abracei e beijei meus filhos caninos, escrevi. Agora é hora de caminhar com a Amora, que anda solta e livre pelas ruas do condomínio, essa estrutura absurda criada pela nossa sociedade igualmente absurda. Enquanto ela anda na minha frente, observo os pássaros, a vegetação, as tonalidades do céu, a lua e as estrelas quando estas estão visíveis. Vivo o mundo ao meu redor e dentro de mim, independentemente do olhar de qualquer outro.
Como sempre uma escrita maravilhosa. Cada dia melhor.
ResponderExcluirAs impressões sobre nós mulheres sermos invisíveis para esses homens então corretas.
Descobri que nunca fomos vistas e nem amadas.
Mas...isso nos fortaleceu para aprendermos a olhar para nós e nos amarmos.