sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Desmarginar

"A medida de uma alma é a dimensão do seu desejo."

Flaubert, citado no documentário O Incerto Lugar do Desejo


"Toda coisa se esforça, quanto está em si, por perseverar no seu ser."

Baruch de Espinosa na Proposição VI, Parte III, da sua Ética. Tradução publicada na 2ª edição de Os Pensadores, 1979, com retificação de texto indicada pela professora Marilena Chauí em curso ministrado na USP, nos anos 2000.



Conatus. O esforço de perseverar no ser. Essa palavra, ouvida pela primeira vez da boca de Marilena de Souza Chauí, que nos hipnotizava com a excelência e a magistralidade de suas aulas inesquecíveis, se entranhou em mim como um enigma que agora entendo venho tentando desvendar desde sempre.

Mais ou menos potência, mais ou menos desejo. Marilena era a encarnação de um conatus gigantesco. Ela exalava energia e conhecimento e nos bombardeava com mísseis certeiros de vida. Acendia o cigarro e, por entre as lentes dos seus óculos, nos mirava com sua fala carregada de tesão. Afinal, que outro nome dar para libido, para energia, para o saber que, assim como a mim, acredito ter transformado outros ali naquela sala?

Ela nunca saiu da minha memória e agora me dou conta de que todas as vezes que ouço alguém falar com vivacidade e articulação apaixonada penso, mesmo que sem pensar, nela. Marilena foi, para mim, a encarnação, a imagem do desejo humano de se expandir em pensamento e em ação, uma metáfora do que é estar intensamente vivo, do que é ter um conatus poderoso.

Um salto no tempo e no espaço e cá estou falando mais sobre ele, sobre o conatus (sem qualquer pretensão acadêmica, diga-se de passagem).

Ele, como conceito deslido por mim, talvez seja o desejo em estado puro, o próprio ser do humano que sem desejo não é ser. Desejo que é potência de perseverar em si, de se manter como e de ser cada vez mais ser. A passividade, como ensinou a Chauí, seria o esforço inadequado de perseverar no ser, o que, relido agora por mim, ressoa como uma espécie de potência desejante aquebrantada. Uma potência impotente que até quer, mas não pode. Pois se há algo que se aprende numa análise é que, ao contrário do que muito se alardeia por aí, querer não é poder. Querer, ao fim e ao cabo, não só não é como é diferente de desejar.

Mas o mais enigmático não é o desejo em si e sim, a meu ver, a sua medida, enigma para o qual, já adianto, não tenho resposta. Sei apenas que há pessoas mais desejantes e outras, menos desejantes. Criaturas como a Marilena Chauí, que exalam vida, e pessoas que delas não há nada, ou quase nada, para darem.

Pelas primeiras, tanto mais raras quanto intensas, sou capaz de parir mundos de amores. Sou tomada pelo estado de poesia de Chico César quando vejo o desejo brotado puro do fundo da terra sólida de alguém. Desejo que, quando não se trai, se revolve todo em coragem para ir mais além das próprias fronteiras, para se desmarginalizar em desmargem alheia. Desejo que, posto em movimento, vai, acresce, conecta, transforma o um em outro e o outro em um num jogo de alteridade sem o qual, de novo, humano não é ser, tampouco humano.

Na equação da medida do desejo eu diria que quanto maior a potência de agir de alguém, maior o seu extravasamento de alma, maior o seu ser e maior a vida para viver. Afinal, não foi à toa que disse o poetinha que a vida, a vida só dá pra quem se deu.


Para A., que de se dar me desmargina em ser.

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