E com a dona Lina, como será? Foi a pergunta que fiz a V. ao deixar o trabalho, na última segunda-feira, ainda com a notícia da suspensão do expediente em processamento psíquico.
Lina, ou dona Lina, como a chamamos, é uma moradora de rua que nos frequenta, segundo V. me contou, há anos. Somos um órgão público ligado a uma parte muito específica do sistema legal e, teoricamente, não temos muita serventia para aquilo que, imagino, seriam as principais questões da dona Lina. Contudo, na prática, ela parece gostar de nos visitar. Tanto que nos últimos tempos tem ido até nós algumas vezes na semana. Ela pega uma senha, aguarda sua vez e, quando chamada, fala. Dona Lina vai até nós para falar e, talvez por ser escutada, às vezes mais, às vezes menos, acaba voltando. Seu discurso, incoerente para nós, faz todo o sentido para ela. Enquanto escuto a dona Lina, mil perguntas passam pela minha cabeça, perguntas para as quais, constato, não temos as respostas, nem eu, nem ela. Há quanto tempo ela está na rua? Quem são e onde estão seus familiares? Onde ela dorme? Já foi agredida? Quantas vezes? Foi violentada? E essas pessoas que vão e vêm no seu discurso, quem são? Existem no mundo real? E a fome? E o frio? E o banho? E as doenças? Enquanto escuto a dona Lina, tento transformar suas palavras em pistas que me levem até ela. Só que eu não consigo chegar. Com a dona Lina não funciona assim e o máximo que dá para fazer é oferecer café, guloseimas e um pedaço de papel com um conteúdo legal.
Dona Lina nos visitou na última segunda-feira, logo no começo do dia. O clima já estava tenso, agitado, e ela não se demorou. Mal a vi. Ou melhor, eu a vi enquanto se afastava. Pensei, como vai ser com ela? Será que vou voltar a vê-la? Como ela vai "se esconder" do vírus? Casa? A dona Lina não tem casa. Ela tem um corpo, suas sacolas, e só. Será que nós, sociedade civil (des)organizada, imaginamos que, por serem socialmente invisíveis, pessoas como a dona Lina também são invisíveis para o vírus?
Os olhos da dona Lina costumam refletir partes do seu discurso e eles me devolvem a certeza de que ela sabe. Ela sabe que sofre das faltas todas, sabe que é destituída de tudo, sabe que outros, mas não ela, têm tudo o que ela, e aí é que não tem como entender ou explicar, não pode ter. A dona Lina pode não dar as respostas para que eu chegue até ela, mas ela responde com precisão a pergunta que eu sempre me faço enquanto a escuto. Afinal, os loucos, não seríamos nós?
P.S.: Dona Lina é um nome fictício, utilizado para preservar a identidade da personagem, real, de que trata este texto.
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