domingo, 25 de março de 2018

Porque a vida não é filme

"A vida não é filme
Você não entendeu
Ninguém foi ao seu quarto
quando escureceu
Saber o que passava
No seu coração
Se o que você fazia
era certo ou não"

                     Ska, Herbert Vianna 


Durante o primeiro ano do curso de Filosofia, a cujas aulas, naquele momento de choque inicial, eu assistia meio tonta de tanta adoração, ouvi de um professor que, para um determinado expoente da Filosofia Medieval, nós, seres humanos, éramos como que anjos caídos, desconectados da nossa outra metade (Deus, no caso), condição que nos fazia passar toda a vida em busca da parte que perdemos. Enquanto o professor, com seus modos gentis e a clareza que lhe eram característicos, falava e rabiscava a parte inferior da lousa, fazendo uma espécie de desenho indicativo da separação das partes e da dor dessa alienação, dei aquela congelada básica que acontece quando identificamos num discurso a explicação, em palavras e frases concatenadas de maneira lógica, de algo que até então era apenas sentido. Descongelei, olhei com toda a atenção para o rosto do professor, que continuava falando, e intuí, logo na sequência da revelação perturbadora da falta, que não só éramos seres incompletos como também que essa incompletude era algo praticamente irremediável, que nos perseguiria pela vida afora. Bateu uma tristeza que só chorando mesmo, e foi exatamente o que eu fiz. Quando dei por mim, estava tentando disfarçar o choro, enxugando as lágrimas como quem estava só dando aquela coçadinha nos olhos, fungando de leve para parecer que era só uma alergia etc. Só para você, querido leitor, entender melhor a situação: eu tinha vinte aninhos e estava ali, sentada numa sala lotada de gente mas me sentindo totalmente desamparada, intuindo que, ao contrário do que eu havia imaginado ao longo da minha infância feliz e da minha adolescência livre, leve e louca, a vida não seria assim tão fácil. Estranho seria não chorar, concorda?


Ainda nos idos do meu passado como estudante de Filosofia, numa noite até então despretensiosa, ouvi de outro professor (Franklin Leopoldo e Silva, suas aulas foram das melhores que tive na vida!) a explicitação da ideia da fissura da existência que precede a essência e do nada que permeia o ser. Novo congelamento, nova velha intuição: tanto a angústia que não raro me pegava de jeito e me virava do avesso como a náusea insuportável que eu vinha sentindo naquela época enquanto lia a famosa obra de mesmo nome (A náusea, de Jean-Paul Sartre) eram coisas, digamos, naturais e, mais uma vez, inexoráveis. Era e seria assim e pronto, para sempre. Dessa vez não chorei e confesso que fiquei até aliviada. Afinal, tudo bem eu morrer de enjoo enquanto lia um livro que tornava praticamente palpável a sensação do vazio de existir. Bizarro seria dar de cara com a angústia e não sentir nada no estômago, concorda novamente?


Muitos anos se passaram após os episódios iniciais da descoberta, introjetada por todas as células do meu ser, do vazio e da angústia de existir, ao longo dos quais busquei incessantemente não pela parte, mas pelas partes que faltavam em mim. Durante esse percurso ignorei, em razão de um inconformismo e de uma rebeldia inúteis que só se explicam pela imaturidade, o que hoje eu vejo como sendo a principal questão relacionada à falta, que é o fato pronto e acabado de que ela nunca deixará de existir, faça você o que fizer, esteja você com quem estiver, onde estiver, com quanto dinheiro conseguir. O que muda, na real, é simplesmente como você vai lidar com ela, e é bom, diga-se desde já, que seja da melhor maneira, pois ela será para sempre, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, a sua grande companheira.


Recentemente recebi o link de um vídeo cujo tema era justamente a falta. (Há alguns anos, aliás, a pessoa que me mandou esse link me disse que era como se houvesse um enorme buraco dentro dela, o que claramente lhe causava grande tristeza.) Pois bem, levei uns dias mas finalmente, num momento x, cliquei no link. O vídeo era uma leitura do livro infantil A parte que falta, e o seu nome, A falta que a falta faz. (JoutJout, tô viciada nos seus vídeos; quase morro de tão ótima que você é.) Gente, é o seguinte: sabe todo esse blá-blá-blá aí de cima? Tudo o que filósofos e psicanalistas disseram até hoje sobre a falta? Então, está tudo resumido e ao alcance do entendimento de uma criança no livrinho que eu acabei de mencionar e, como se não bastasse, a sensacional Júlia deu o toque final da perfeição da explicação no vídeo que ela fez. Sei que muita gente já viu esse vídeo, que ele deu uma viralizada e tal, mas sempre tem uma galera viajante como eu que alguém precisa dar um toque e falar, olha, vê lá tal coisa na internet porque é muito boa. Vejam o vídeo da JoutJout porque ele é fundamental para todos nós entendermos, de uma vez por todas, que a falta existe, está e estará aí para sempre e, pasmem, não necessariamente é algo ruim.


Claro que a falta é angustiante, mas pergunto o que seríamos nós sem ela. Se o homem é um ser desejante, não seria o desejo justamente o fruto da falta? Caso a falta nos faltasse, será que também não nos faltariam a arte em geral, as descobertas tecnológicas que nos deixam de queixo caído, os feitos atléticos surreais que tanto admiramos? Supondo, na hipótese da arte, que sem a falta Michelangelo ainda assim tivesse pintado o teto da Capela Sistina, será que, ao olhar para esse teto, no caso de um ser humano livre da falta, alguns de nós (os que já se emocionaram nessas circunstâncias) continuariam tendo o ímpeto de chorar diante da beleza? Por que, afinal de contas, não seria a identificação do belo um dos raros momentos, mesmo que fugazes, de preenchimento da falta? E amor, existiria sem a falta? Será que sem ela haveria compaixão? Para finalizar essa série de perguntas singelas, não seria a falta que permeia a nossa existência justamente aquilo que nos torna humanos?


Há poucos dias uma determinada pessoa me perguntou, de forma que posteriormente se revelou bastante leviana (infelizmente honestidade e profundidade são qualidades muito mal distribuídas entre nós, anjos caídos), o que me falta. Eu respondi que o que me falta é conexão, justamente porque, mais uma vez, eu estava desconsiderando o elemento essencial da falta, ou seja, a sua perenidade.


Contudo, desde que aprendi a suportar a angústia de viver, nada mais realmente me faltou. Quando ouvi daquela pessoa que mencionei mais acima sobre o enorme buraco que parecia haver dentro dela, desejei fortemente que ela deixasse de sentir a tristeza que ocupava o espaço do buraco, pois eu sabia que este, em si mesmo, jamais deixaria de existir. E pensei dessa forma porque por muitos anos a tristeza da falta me atormentou e me angustiou, até que percebi, de uma maneira que ia além do entendimento racional, que o pulo do gato não consistia em achar algo ou alguém para colocar no buraco da falta, nem jogar o que quer que fosse nele. O grande lance era simplesmente segurar a onda, respirar fundo e aceitar a angústia de viver. E desde então é assim que eu vivo e é assim que continuo buscando (porque, entenda, a busca faz parte da falta, que por sua vez será sua best friend para sempre e mesmo que você e o seu buraquinho se deem super bem, ele nunca vai deixar você quietinho e, de tempos em tempos, vai chamar você para algum rolê) não a melhor forma de eliminar a falta mas sim a melhor forma de viver com ela.


Muita coisa para um domingão? Sorry, mas quando o assunto é viver é isso aí mesmo, tem coisa que não acaba mais. O importante aqui é saber que, quando se trata da falta, a única saída (que na verdade não é uma saída) é olhar firme para ela e dizer: segura a sua onda aí, que eu seguro a minha aqui. E vamos que vamos. Afinal, a vida é tudo, menos filme com final feliz.

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