domingo, 5 de agosto de 2018

Garota na janela

É domingo de manhã e a repentina visão do mar num trecho da estrada que me traz de volta para casa é motivo de alívio. A cor da água se une ao verde esparramado pelas montanhas e a paisagem, crua em sua natureza quase desnuda de frenesi humano, concretiza a percepção do fim da agitação de uma sequência de dias feitos de imagens e de sons de palavras, gestos, frases, olhares, cores, cheiros, texturas e pensamentos que, enquanto duraram, pareceram encobrir todos os espaços, os de fora e os de dentro de mim.

Embora houvesse o prazer de estar em confusão com tantos elementos, havia também o desejo, vindo em lufadas, de estar em um lugar só meu, preenchido com o calor da calma de alguma organização interna. Foram golpes que me pegaram desprevenida e durante os quais percebi, com o divertimento que o inusitado às vezes nos causa, que ao desejar o acolhimento do silêncio eu pensava não em lugares obviamente íntimos, como o meu quarto e a minha cama, ou relacionados a uma memória afetiva que me remetesse a momentos de relaxada introspecção, como o gramado de um parque onde um dia eu tenha me deitado sobre uma canga com a Gigi ao meu lado para ler um romance, mas sim no divã da minha analista.

Nada mais natural, talvez, já que é nele que venho encontrando o contorno daquilo cuja voz não se coloca em palavras mas que se deixa entrever nos vãos das frases que digo em voz alta e que refletem o que está além de qualquer lógica; é com ele na cena das minhas fantasias que dialogo com o contraponto do meu próprio pensamento sobre me jogar ou recuar diante do abismo da existência para acabar descobrindo que nem uma coisa, nem outra; é para ele que tenho levado meus escritores e livros tão essenciais e os filmes e as séries que me dão o que pensar. No divã posso falar, sem medo, sobre o arrebatamento da beleza e a ebriedade do sexo, sobre como me sinto e não me sinto velha, sobre a festa, a punição e o infinito que entre elas constitui a vida, sobre o desperdício de considerar a morte a todo momento que se vive, sobre a densidade que tanto procuro. À meia-luz e em meio a almofadas que me amparam, no divã eu posso, como o objeto que me olha à minha direita, derreter a superfície dura que me protege para enfim me confessar como sou: frágil e imperfeita.

De volta ao burburinho do mundo, na noite da despedida dos dias intensos que abrem este texto, retomo a imagem do divã e muitas outras, de amparo e de desamparo, enquanto, sentada junto ao pequeno balcão da janela de um restaurante, sou embalada pelo ir e vir de quem passa lá fora e pelo jazz do Dave Brubeck que ressoa no ambiente. As pessoas que se aproximam da entrada do restaurante ouvem, de um dos garçons, que não, não estamos mais servindo, já encerramos, pedimos desculpas. Após a notícia, ouço o que dizem entre si, os novos planos que se formam sob a minha janela, e as observo enquanto se afastam, tentando imaginar quem são elas umas para as outras e o que será delas naquele futuro imediato. Vejo também os que passam simplesmente, alguns tropeçando nas pedras que calçam a cidade e que me encantam desde os tempos de criança. Elevo o olhar e a fachada das edificações coloniais em contraste com o céu escuro me transporta para o lugar onde nasci e cresci e para a tia-avó que me trazia de mãos dadas para as praças que encerram, na rua que as interliga, o museu republicano que tanta impressão e amor me causou. Praças que por sua vez guardam as lembranças de brincadeiras em bancos e da banca de jornais onde a minha tia-avó, com a qual me pareço na minha liberdade, me deu o mundo inteiro em forma de gibis, revistas e livros, pelos quais, aliás e não por acaso, eu estou ali.

Na moldura da janela que contém o espaço do meu corpo e à meia-luz que se faz notar às minhas costas, acabo encontrando, por alguns momentos, um lugar de conforto e de observação silenciosa, onde novos pensamentos surgem para alterar a forma daqueles que já vêm irrompendo em bolhas incessantes de fervura, unindo-os em círculos maiores até que se tornem uma grande e densa espiral, um resumo simbólico do intangível que é o tempo da vida.

Poucos dias depois, deitada no divã, deixo que o silêncio em espiralada ebulição escape em forma de palavra falada, aquela que tanto eu temi e pela qual agora ironicamente eu tanto anseio. Os livros que ali vivem e que tudo observam e escutam a uma distância discreta parecem, em sua muda aquiescência, não se incomodar com a mudança. Completos como são talvez saibam que, se no fundo daqueles que os escrevem habita o nada, dito ou escrito, todo o resto vira palavra.


P.S.: O título desta publicação é uma referência à Muchacha em la ventana, obra de Salvador Dalí, exposta no Museo Reina Sofía.

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