sexta-feira, 22 de março de 2019

Coragem!


Você é psicanalista? Não, Contardo, sou estudante de psicanálise. Ele me olha e, inesperadamente, diz, coragem!, ao que eu o asseguro, deixa comigo.

Coragem é a palavra que vem reverberando na minha cabeça ao longo desta semana. A  reedição da submissão escancarada e voluntária do Brasil aos Estados Unidos (e não só ela) me fez pensar em Hello, Brasil! e outros ensaios, livro escrito pelo psicanalista, escritor e psicoterapeuta Contardo Calligaris a partir de notas que começaram a ser por ele esboçadas no fim dos anos 1980, numa tentativa de entender o seu processo de mudança para o Brasil.

As notas resultaram num texto deliciosamente fluído que analisa o Brasil e nós, brasileiros, a partir de um ponto de vista psicanalítico, porém não só. Eu ousaria dizer que o livro é um misto de teoria e prática psicanalítica com um profundo conhecimento histórico e sociológico a respeito do nosso país, ilustrado por observações e experiências pessoais que levam a construções teóricas inequívocas.

A viagem de Contardo Calligaris pelo inconsciente brasileiro nos leva a um lugar não pouco frequentado pelo ser humano ao longo da sua história; no nosso caso, esse lugar sedutor, em muito similar a um certo paraíso do qual relutamos em nos afastar, seria aquele onde vive o colono e o colonizador em cada um de nós, desde os tempos da chegada do primeiro europeu por aqui.

A ambivalência da relação inconsciente que estabelecemos com o nosso país não me espantaria tanto caso ela não fosse tão perniciosa a ponto de produzir sintomas como a violência, a corrupção exacerbada, o desprezo pela educação e pela cultura, a hipocrisia e a omissão com relação às crianças e outros tantos males que nos corroem desde que o Brasil foi tomado como colônia. Diante disso, fico imaginando que já passou da hora de investirmos num outro tipo de relação com o nosso país, menos sedutora e turbulenta, é verdade, mas certamente mais saudável. Uma relação onde colono e colonizador possam conhecer e recordar sua própria história, num esforço de aceitação e de elaboração de uma identidade nacional desprovida do desejo único e imediato de gozo e da necessidade infantil do eterno reconhecimento de um pai.

A palavra coragem surge quando percebo que, a despeito da urgência de nos tornarmos sujeitos da nossa própria civilização, estamos ali ajoelhados, mais uma vez, encenando o mito do pai protetor; surge quando penso que dizer que eu não tenho nada a ver com isso por não ter feito determinadas escolhas de nada vai adiantar; surge quando penso em dizê-la para cada brasileiro que, independente das suas escolhas, não queira mais se deixar levar pela promessa eternamente vazia da construção de um país paradisíaco a partir do toque mágico de metralhadoras e cacetetes que funcionariam como varinhas de condão.

Certa vez ouvi, num documentário (Um homem de moral), Paulo Vanzolini dizer que as pessoas, no geral, estavam equivocadas no que dizia respeito à parte mais importante de uma de suas músicas mais famosas, Volta por cima. Segundo ele, todo mundo repetia incessantemente os versos que dizem "levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima", quando, na verdade, o fundamental da letra vinha antes, com "reconhece a queda e não desanima".

Contardo, obrigada pela palavra. Para todos nós, coragem!

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