domingo, 10 de março de 2019

Uma noite de 12 anos

Dos filmes aos quais assisti nos últimos tempos, Uma noite de 12 anos (La noche de 12 años, 2018) foi seguramente um dos mais impactantes, daqueles que ficam dias como que grudados em pedaços esparsos de pele, arranhando e incomodando o corpo todo.

Mais do que a violência física à qual foram submetidos os três presos políticos protagonistas da história (real) contada por Álvaro Brechner, foi a barbárie psicológica traduzida pela privação da palavra, impingida a José Mujica, Mauricio Rosencof e Eleuterio Fernández Huidobro, o que mais me impressionou.

De forma resumida, os três homens passaram mais de uma década presos em solitárias, sem ter acesso a qualquer objeto que pudesse ser um veículo de palavras. Livros, jornais, papel em branco, lápis, caneta, máquina de escrever, nada lhes era permitido. As privações, claro, abarcavam também remédios, roupas, cobertores, colchões, itens de higiene, tudo o que se possa considerar como necessário à sobrevivência; porém, a minha maior angústia ao longo do filme (e depois dele) recaiu sobre o aspecto relacionado ao silenciamento interior e exterior dos três presos, a ponto de, a despeito das inúmeras cenas passíveis de emocionar o espectador, a que mais me marcou foi aquela na qual, levado a uma consulta médica por estar enlouquecendo, o personagem de José Mujica diz para a médica que o atende que ele não lê há sete anos.

Isso inevitavelmente me faz pensar na perversidade da privação e do mau uso da palavra e, por outro lado, na liberdade intrinsecamente relacionada a ela; liberdade que, talvez, seja a palavra chave para entendermos a necessidade que alguns têm de tentar privar ou de impedir que se forneça palavras a outros.

Como se sabe, consciente ou inconscientemente, liberdade, medo e angústia são muito próximos uns dos outros; liberdade implica responsabilidade pelo próprio desejo, o que por sua vez causa medo e angústia. Separar-se dos outros, crescer, amadurecer, bancar e encarar as próprias escolhas com todas as consequências que isso venha a significar não é, como todos nós sabemos na carne, fácil e indolor.

Ao privar os três homens da palavra, o governo ditatorial uruguaio da época claramente pretendia despedaçá-los e enlouquecê-los por motivos que, numa análise superficial, poderiam ser considerados políticos. Algo me diz, no entanto, que, por trás de motivos que podem ser alegadamente políticos, podem haver outras razões que, de tão desarrazoadas, chegam a ser inconfessáveis.

O que, afinal de contas, leva governos (que, jamais esqueçamos, são formados por pessoas) a agirem de determinadas formas? O que pode significar a necessidade de reprimir, de mentir, de esconder, de isolar, de controlar, de torturar, de matar, direta ou indiretamente, por ação ou por omissão? O que está por trás da obsessão relativa às condutas e preferências sexuais das pessoas? O que pode haver de tão incômodo na cultura, na ciência, nas artes e naqueles que desejam aprender e se esforçam para isso? Qual é o significado do despeito e do desrespeito dirigido aos que são tidos como intelectuais? O que, por fim, há de tão pavoroso nas palavras ditas e escritas por aqueles que não têm medo delas e de si mesmos?

Essas e diversas outras questões invariavelmente surgem para mim acompanhadas da ideia, muito mais intuitiva do que racional, de que as respostas que eu procuro estão ligadas ao medo da liberdade. Medo das consequências que o eventual (re)conhecimento das palavras e dos desejos que nos constituem podem trazer. Medo da perda de um controle que não passa de uma grande quimera e da ilusão de que há sempre um pai, ao qual vários nomes e roupagens se dá, que está constantemente olhando por nós e que nos protegerá e acalentará para sempre, nos mantendo numa condição edênica eternamente cara ao nosso eu ideal.

Nesse cenário construído pelo medo e pela covardia a intromissão de palavras não poderia ser bem-vinda. Palavras nos tocam no nosso mais verdadeiro e desconhecido eu e chegam a ser obscenas de tão íntimas. Uma palavra pode ser o bastante para o início e para o fim. Palavras revelam o que nem sequer sabíamos existir em nós. Palavras se misturam para nos levar ao nosso desejo e pulsam para fora de nós na tentativa de acariciar o desejo do outro. Sem palavras não somos.

Creio ser por isso que a ditadura uruguaia submeteu José Mujica, Mauricio Rosencof e Eleuterio Fernández Huidobro ao silêncio absoluto, impondo-lhes uma tentativa de aniquilação pela ausência de palavras. Aniquilação que provavelmente se afigurou, para muitas dessas pessoas que compunham tal ditadura, como uma defesa contra seus próprios temores de liberdade já que, para muitos, a destruição daquilo que não se tolera em si mesmo parece ser a única possibilidade de continuar existindo. Sem isso, a vida, refletida na liberdade sexual, de expressão, de sentimentos, de ideias, de maneiras diferentes de ser e de estar no mundo pode parecer insuportável. Aquilo que se deseja com tanto ardor e que não se permite viver, quando visto no outro, aparentemente pode causar algumas das maiores atrocidades já vistas e vividas pela humanidade.

Talvez esses sejam os mesmo motivos que levam governos medrosos e covardes a insistirem na proclamação e na manutenção de uma noite eterna de ignorância, submetendo milhões de pessoas ao analfabetismo e privando-as daquilo que lhes daria a única e verdadeira chance de se libertarem da miséria intelectual, material e política que as aflige. Esses mesmos governos são aqueles que, horrorizados com os significados que as palavras carregam, dispensam a elas, por sua vez, todo o horror que levam dentro de si, escondendo a própria abjeção atrás de hinos e de palavras de salvação. Mal sabem que o Éden é só um lugar descrito numa fábula. Aqui, só as palavras carregadas de verdade libertam.

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