domingo, 26 de maio de 2019

Léxico do absurdo

"Sandra Você mencionou o desaparecimento: é um dos seus temas recorrentes.
Ferrante Acho que sim, ou melhor, sem dúvida. Tem a ver com ser reprimido, mas também com reprimir a si mesmo. É um sentimento que conheço profundamente, acho que todas as mulheres o conhecem. Toda vez que surge uma parte de você mesma não coerente com o feminino canônico, é possível sentir que aquela parte causa incômodo a você mesma e aos outros, que convém fazê-la desaparecer depressa. Ou, se a pessoa tem uma natureza combativa como a de Amalia, como a de Lila, se é uma mulher que não se aquieta, que se recusa a ser subjugada, entra em cena a violência. A violência tem uma linguagem que é significativa pelo menos em italiano: rompere la faccia - quebrar a cara -, cambiare i connotati - desfigurar. Está vendo? São expressões que fazem referência à manipulação forçada da identidade, à sua anulação. Ou você faz o que eu mando ou vou transformá-la ao som de pancadas até matá-la."

                                                                                                     Elena Ferrante em Frantumaglia


"Não é possível viver 24 horas por dia mergulhada na consciência imediata do próprio sexo. Misericordiosamente, a natureza da autoconsciência de gênero é bruxuleante."

                                                                                                      Maggie Nelson em Argonautas


P.: O que é ser mulher?
Eu: Ser mulher é difícil.



Acho que por ter intuído, desde cedo, que o movimento que conduz a dança do universo íntimo de cada um de nós é pura palavra, adquiri, ao longo da vida, uma profunda crença no poder de mobilização que os livros têm.

Imagino que a cadência emitida pelas palavras que caminham pelas páginas ressoa nos ouvidos e na pele dos seres que habitam o universo dos nossos medos e desejos e dá início a uma dança que nos faz revolver, com pés, mãos e o corpo todo, a terra grossa das camadas de pó de vida morta que se acumula cotidianamente entre nós e as nossas entranhas. É tanta terra que se espalha pelo chão que é possível formar montes do alto dos quais se enxergam mundos que no todo dia fogem da nossa visão.

Com As boas mulheres da China: vozes ocultas, escrito pela jornalista e escritora chinesa radicada na Inglaterra, Xinran, subi num desses montes para tentar ver melhor um país muito distante do meu, a China. Lá de cima, porém, meus olhos irremediavelmente se voltaram para baixo e para dentro. Quando se trata de nós, mulheres, esse pedaço do outro lado do mundo que vislumbrei do ângulo em que estava não só não trouxe as melhores novidades como mostrou uma semelhança que acredito poder ser sentida no mundo inteiro quando a questão é a expressão da identidade de um ser humano do gênero feminino: a repressão.


O fato é que, aqui ou na China, ser mulher não é simples e, se a questão da realização e da expressão da própria identidade para qualquer ser humano é algo bastante complexo, para uma mulher ela é inequivocamente mais difícil.


Para começo de conversa, existe um léxico do que é ser mulher que tanto hoje como ontem é inviável do ponto de vista da subjetividade humana. Um dicionário que tem por linha mestra a repressão e que traz significados que podem ser qualquer coisa menos os da identidade de uma mulher. Mas, afinal, o que é ser mulher?


Confesso não saber e, para mim, ser mulher continua sendo aquilo que está colocado na epígrafe deste texto, ou seja, é difícil, embora menos do que antes. O que sei, contudo, é que ser mulher é antes de mais nada não sê-lo; é simplesmente ser humana, é ser o que se quiser ser sem ter que pensar no que, do ponto de vista da identidade de gênero, se é.


E por que é difícil? Porque ser mulher sem definição no léxico global pode causar estranhamento, medo, ameaça, inibição, insegurança, afastamento e dúvida sobre o que é esse ser cuja definição parecia tão simples e que agora não está mais à mão. Uma criatura que já não cede à repressão imposta pelas palavras de um dicionário que desde sempre foi construído por outros sobre a base amolecida e movediça da ilusória completude fálica.


Completude, aliás, que acaba sendo posta em cheque pela revelação da falta do outro quando este, sendo uma mulher fora do léxico e portanto, num primeiro choque, ilusoriamente completa, acaba escancarando a incompletude de quem se acreditava tão cheio de si.


O mais triste e perigoso é que a repressão que escreve as linhas desse vocabulário tão fraco de sentidos sempre oferece o risco de enfraquecer também as nossas vidas. Muitas mulheres, ainda hoje, deixam de fazer e de ser o que desejam; cedem seus corpos e muito tempo de suas vidas para gerar e cuidar de filhos que nem sempre sabem se gostariam de ter mas que estão lá, inscritos no dicionário; entregam mensalmente todo o salário, fruto do trabalho fora de casa, para maridos que dentro dela agem como visitantes que pouco ou nada têm a ver com a organização doméstica; deixam de estudar para que, por falta de recursos financeiros para que o façam os dois, o marido estude; são tidas como as únicas responsáveis pela educação e por tudo o que acontece com os filhos; não viajam ou saem sozinhas por medo de serem socialmente julgadas; não se sentem no direito de usar seus próprios corpos para gozarem como, com quem e quantas vezes quiserem; acreditam que têm menos a dizer ou a escrever que os homens, como se as palavras tivessem ficado interditadas pelo léxico do absurdo que é aquele que define o que é ser uma mulher.


Desse vocabulário tétrico ao qual somos expostas desde que nascemos, muitas de nós incorporamos, mesmo sem perceber, a crueldade do prazer relativo ao eventual massacre de uma semelhante que ousou escrever uma história diferente a partir de termos que, ao serem por nós pronunciados, perfazem a mágica da identificação da oprimida com o seu opressor. Qual de nós, pergunto, nunca se referiu a outra mulher como "aquela vaca", "puta", "vadia", "biscate" etc. etc.? 


Volto então à pergunta para pensar que ser mulher talvez seja uma grande desconstrução e apropriação de palavras a partir das quais e com a inserção de inúmeras outras possamos construir, cada uma de nós, o nosso próprio livro, cuja categoria é irrelevante. O que realmente importa é formar estantes abarrotadas de volumes das mais diversas cores, tamanhos, gramaturas, fontes, capas, ilustrações, mapas, fotografias, pesos, texturas, mas cuja criação tenha se dado pela escolha exclusiva de cada uma de nós. Uma estante aberta onde possamos nos dar a conhecer, para nós e para o mundo, numa identidade que é não só da ordem do gênero mas, principalmente, do humano.

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