domingo, 10 de agosto de 2025

Os homens que não viam as mulheres

Tenho estado ocupada demais comigo mesma, chocada e maravilhada em demasia com as mudanças, nada lentas e graduais, que me acometem no momento. Você está na menopausa, a minha ginecologista me diz, olhando o resultado da repetição dos exames. Menopausa, eu? Não pode ser. A minha mãe tinha cinquenta e tantos anos quando entrou na menopausa e eu tenho quarenta e seis. Não é possível. Com essa taxa hormonal é possível sim. Você está na menopausa. Com esse veredicto, a médica declarou o início da minha nova vida, ou seja, a de uma mulher que está envelhecendo, ou melhor, que está sentindo na pele, nos ossos, nos músculos e no cérebro os efeitos do envelhecimento e fazendo o possível para lidar com eles da melhor forma, o que significa dedicar tempo e recursos, principalmente financeiros, para tornar a situação menos desesperadora.

Nesse aspecto, a propósito, a dureza do envelhecimento e o fato de haverem várias velhices, a depender da condição socioeconômica de quem envelhece, ficam ainda mais patentes quando penso que eu, na condição de uma mulher privilegiada, posso lançar mão de médicos, nutricionistas, fisioterapeutas, suplementos, medicamentos, comida de boa qualidade, exercícios físicos diversos etc. para de alguma forma remediar o irremediável. Mas e quem não pode? E quem não tem acesso a isso tudo?

Num primeiro momento, senti uma mistura de culpa, vergonha, medo e ressentimento. Culpa por achar que meu corpo havia falhado, que era cedo demais para envelhecer e que talvez eu tivesse feito algo errado, algo que tivesse contribuído para esse envelhecimento imaginariamente precoce; culpa também por estar bastante preocupada com isso, por estar dedicando tempo e dinheiro a essa questão pessoal quando, como dito acima, a maioria das mulheres do planeta não podiam se dar a esse luxo. Vergonha por ter supostamente falhado na missão de ser jovem para sempre, por, de acordo com a ginecologista, estar com uma osteopenia fodástica, pelo meu assoalho pélvico, junto dos meus hormônios, estar despencando. Medo do fim, do fim de tudo. Mais medo de morrer. Quer dizer então que acabou, eu me perguntava. Acabou tudo? É o fim da vida como eu a conhecia? Existe vida depois da menopausa? Se existir, qual é o tipo de vida que se vive depois desse acontecimento? Ressentimento pois, após devorar livros, podcasts e artigos, e de bombardear as minhas amigas, a minha mãe e as amigas dela com uma série de perguntas, concluí que muitos dos sofrimentos físicos e psíquicos pelos quais passei nos últimos cinco anos muito provavelmente tinham relação direta com a perimenopausa. Só que isso ninguém me contou antes.

Paradoxalmente, passado um breve período de tempo após o choque causado pela notícia que marcou o fim da minha vida como eu a conhecia até então, mais precisamente parte da atual estação do ano, ou seja, do inverno no hemisfério sul, eu me peguei em paz, em poesia e em liberdade, tomada pelo desejo de um novo projeto, encaixada como nunca antes. De repente senti, a posteriori (como não poderia deixar de ser), o clique de algo que se encaixou. Mais ou menos como se um aglomerado de pessoas confusas, barulhentas e ansiosas tivessem finalmente conseguido se organizar em linha, não necessariamente uma atrás da outra, mas uma ao lado da outra, cada uma no seu melhor lugar, todas mais calmas, mais silenciosas, menos ansiosas. Todas com um livro nas mãos.

Acho curioso tudo isso estar acontecendo ao mesmo tempo e venho passando dias maravilhada com não sei bem o quê. Comecei então a perceber que a minha análise, aquele momento pelo qual eu esperava toda semana com muita ansiedade, não andava mais surgindo como uma necessidade assim tão premente. Pensei a respeito e decidi perguntar para a minha analista, pela primeira vez em muitos anos (ao longo dos quais, exceto em alguns períodos de férias, nunca perdi uma sessão), se ela achava que seria possível passarmos a nos encontrar de quinze em quinze dias. Ao que, para minha surpresa, ela respondeu, claro que sim! É que estamos juntas há muito tempo, de maneira que podemos fazer de quinze em quinze até você parar. Parar? Se acalme, eu disse a ela, rindo, a risada disfarçando o choro que vinha de um lugar que ainda não sei definir, provavelmente do espaço que um dia foi ocupado pelo mais absoluto desamparo, que agora deixou de ser tão absoluto assim.

Dois dias antes de expressar meu desejo para a minha analista, vi um comentário deixado em uma das publicações deste blog, o qual não publiquei (nenhum comentário é postado sem a minha mediação). Nele, um homem que conheci há muitos anos se dirige a mim como se eu ainda estivesse no colegial, onde ele foi meu professor. Ele diz que espera o meu texto sobre o Ozzy, o Osbourne, morto recentemente, do qual eu há trinta anos realmente gostava muito. Há trinta anos. O homem aparentemente se dirige a mim com alguma intimidade, como se me conhecesse, como se algum dia realmente tivesse me conhecido intimamente, como se eu ainda fosse uma presa fácil, uma adolescente supostamente encantada pelo professor dez anos mais velho, casado, que se achava o bonitão da bala Chita e que não economizava esforços na hora de jogar charme para a(s) aluna(s).

Entre a visualização do comentário e a sessão de análise, tenho um sonho “em níveis”. É como se o sonho em si fosse uma coisa concreta, um edifício, uma estrutura física, com níveis. Eu passo de um andar a outro, não há paredes, o sonho edifício flutua. Como um móbile. Há outras pessoas ali, não sei quem são, talvez sejam bonecos ao invés de pessoas, talvez sejam dançarinos, sombras que se movimentam. Acordo com a frase “no adro da Fundação Casa de Jorge Amado” e o restante de Haiti, música de Caetano Veloso e Gilberto Gil, se desenrolando na minha cabeça. Levanto, vou até o banheiro e, enquanto o meu xixi escorre vaso sanitário abaixo, penso na primeira frase, “no adro da Fundação Casa de Jorge Amado”. Desse professor certa vez ganhei um CD do Caetano que tinha essa música; há décadas trabalhei no que agora é a Defensoria Pública do Estado de São Paulo e também em ONGs que atendiam adolescentes infratores e, nesse período da minha vida, inúmeras vezes fui à Febem, hoje Fundação CASA, onde vi, conversei, atendi e defendi adolescentes espancados e queimados. Foi um período difícil, sobre o qual já escrevi um pouco, um tempo em que eu sonhava quase todas as noites com os espancamentos.

Conto o sonho para a minha analista; não foi um sonho de angústia, não foi ele que me fez acordar. Mas o sonho tem a ver com o comentário do professor, eu sei disso, digo a ela. Conto também que senti asco e incômodo ao deparar com aquele lembrete de algo que eu prefiro esquecer num lugar que, apesar de compartilhado, é meu. Mais uma vez, me senti invadida, assim como aconteceu quando, na véspera de um Natal, essa criatura apareceu na porta da minha casa acompanhado do cunhado! A posteriori, a presença daquele homem em forma de provocação para que eu escrevesse sobre algo que ele julgava ainda ser relevante para mim me fez perceber que naquela época eu também sentia asco e incômodo (revividos agora), os quais não sabia nomear. Não sabia organizar os meus sentimentos, tampouco entendia a situação. Eu me imaginava talvez apaixonada pelo professor, outros me diziam isso, mas a verdade é que nunca estive realmente apaixonada por ele. Naquela época namorei outras pessoas e, naquele mesmo período, a esposa do tal professor (e eu sinto muito por ela ter passado por essa situação) descobriu uma carta de amor escrita por ele para mim. Não sei se cheguei a ler a carta. Não lembro. Uma pessoa me disse que aquilo havia sido um ato falho da parte dele e me perguntou o que eu ia fazer. Fiquei surpresa com a pergunta e respondi, nada. Eu nunca tive qualquer intenção de ficar com aquela pessoa casada e dez anos mais velha do que eu. A bem da verdade, nunca tive a menor intenção de ficar “para sempre” com qualquer uma das pessoas que namorei no colegial, exceto uma, que não quis ficar comigo. E ponto. Quando eu já morava em outra cidade e estava no primeiro ano da faculdade, esse professor quis ir até mim. Nos encontramos num parque que eu nunca frequentava e que hoje me pergunto, por que naquele parque? Não lembro o que foi dito, lembro apenas de um bilhete, um verso de uma música. Lembro do asco que senti. Dele, de mim, não sei ao certo. Nunca mais nos vimos ou nos falamos, até ele me encontrar numa rede social da qual não faço mais parte, até ele, pela segunda vez, ousar comentar algo num texto meu num tom de suposta intimidade.

Tudo isso para dizer que a impressão que eu tenho é a de que esse homem nunca me viu. Assim como outros que passaram pela minha vida, o tal professor jamais me viu de verdade. Ele nunca enxergou o meu desconforto, o meu asco. Aparentemente ele também não via a própria esposa. E aqui não dá pra deixar de citar Caetano novamente, quando ele diz que “Narciso acha feio o que não é espelho”.

Para jogar mais lenha na fogueira, um livro vem me fazendo pensar tremendamente no meu pai e no meu ex-companheiro, com quem vivi durante cinco anos. Meu pai, o homem mais egoísta que conheci na vida; meu ex, o segundo homem mais egoísta com o qual convivi (houve outros depois, claro, mas desses eu fugi rapidinho). Conto para a minha analista que Philippe Toussaint, um personagem de Água fresca para as flores, de Valérie Perrin, me faz lembrar do meu ex, ao que ela responde, pesado, hein? Sim, pesado. Sigo a leitura e agora percebo mais fortemente o meu pai no mesmo personagem. Também passo a ver a minha mãe no lugar de Violette, a protagonista da história, e a mim mesma. Das muitas coisas que eu percebo, a principal é o fato de que, assim como Philippe Toussaint não via Violette, sua esposa, meu pai jamais viu a minha mãe (que inclusive sempre foi areia demais para a carrocinha dele, em todos os sentidos), assim como meu ex-companheiro nunca, mas nunquinha mesmo me enxergou, sendo essa realidade muito mais comum e sintomática do que possa parecer. Basta deixar o celular de lado e olhar ao redor (muitas vezes dentro da sua própria casa).

Desde que me separei, voltei, evidentemente, a me envolver com homens que não me viam ou que eventualmente me viam como uma possível mãe (o que dá na mesma), já que esse parece ser um dos meus clichês amorosos; por muito tempo, sofri com a ansiedade, a falta de ar e o desespero advindos de uma sensação de total rejeição, de absoluto desamparo. Até o dia em que, entre braçadas dadas em uma das raias laterais da piscina (prefiro as centrais, de forma que evito as duas laterais extremas, as que beiram as paredes), a falta de ar derivada de uma decepção amorosa recém-sofrida apareceu como outra coisa. Não era aquela pessoa, não era aquela relação. Era outra coisa, outra pessoa, outra (não) relação. Era e sempre tinha sido aquele homem que, lá atrás, não nos via, nem a mim, nem à minha mãe. O resto não importava, era só repetição, o gozo insaciável da pulsão de morte, esse algo além do princípio do prazer, essa coisa que silenciosamente destrói vidas enquanto faz as nossas engrenagens girarem eternamente em falso.

E essa pessoa com quem você ficaria, onde está, me pergunta a analista. Não sei. Provavelmente morando em algum outro país, fazendo o décimo quinto pós-doc da vida, lendo, escrevendo, enfim, vivendo. Melhor não saber. Melhor não saber? Fico pensando na pergunta e entendo, depois, que sim, melhor não saber, pois essa pessoa não é mais aquela que um dia eu namorei, assim como eu também não sou a pessoa que ele namorou. Hoje, somos absolutos estranhos um para o outro, e não há fantasia nem mistério algum a respeito disso. É como as coisas são e pensar de outra forma seria cometer o mesmo erro do professor, o bonitão da bala Chita que segue vida afora repetindo, repetindo, repetindo.

O fim da tarde se aproxima e hoje o dia estava lindo. É domingo e, ao contrário do habitual, me autorizei a não ir à academia. Pela manhã, observei a luz entrando pelas janelas da sala de maneira a permitir o reflexo das folhas dos grandes vasos do jardim na tela da televisão. Olhei para uma faixa de luz que se destacava no ambiente e só não a toquei por receio de dissipar, prematuramente, a delicadeza daquele instante. Tomei o café da manhã, minha refeição preferida, devagar, aproveitando cada gole, cada garfada. Li um romance, abracei e beijei meus filhos caninos, escrevi. Agora é hora de caminhar com a Amora, que anda solta e livre pelas ruas do condomínio, essa estrutura absurda criada pela nossa sociedade igualmente absurda. Enquanto ela anda na minha frente, observo os pássaros, a vegetação, as tonalidades do céu, a lua e as estrelas quando estas estão visíveis. Vivo o mundo ao meu redor e dentro de mim, independentemente do olhar de qualquer outro.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Pequenas Coisas Como Estas

Para Sempre Lilya é o nome do filme que eu vinha tentando lembrar. Dei de cara com ele nas páginas de O amigo, livro de Sigrid Nunez, no qual a protagonista, ao falar com seu amigo suicida, discorre sobre assuntos diversos. A uma certa altura do romance é mencionada uma oficina literária oferecida a mulheres que estavam num abrigo para vítimas de escravidão sexual. (Enquanto escrevo me pergunto, uma vítima de escravidão sexual algum dia deixa de sê-lo?) É nesse ponto do livro que Sigrid menciona Para Sempre Lilya, o filme mais triste que já vi na vida, assim como é também nessa parte do romance que deparo com outra palavra que de alguma forma eu andava buscando, uma palavra que pudesse carregar o sentido do que eu havia sentido ao reler, por aqueles dias, A feminilidade, texto escrito por Freud em 1933.


Humilhação.


Um homem, seja ele quem for, jamais vai saber o que uma mulher sente. Virginia Woolf, Hélène Cixous, elas sabiam, e sabiam do que se tratava quando nos diziam para escrever. Mulheres, escrevam, como um imperativo, uma possibilidade.


Sigo estranhando a escrita masculina, que me soa chata e entediante com mais frequência do que eu gostaria. Abandono romances, retomo alguns. Paul Auster, A invenção da solidão, foi deixado de lado por um tempo. Felizmente o retomei. Édouard Louis, uma exceção. Fico completamente tomada pelo seu ritmo, encorajada pelo seu método. Uma exceção.

---

Ela já havia tido três filhos quando engravidou do quarto. O primeiro deles, S., morreu logo após nascer (ou talvez tenha nascido morto). Ao engravidar pela quarta vez, não desejava ter mais um filho; é inclusive provável que nunca tenha de fato desejado ter algum. Mas será que alguma vez ela teve a oportunidade de saber o que desejava para si?

Contou ao marido que estava grávida e que não ia ter o bebê. Uma cunhada do interior sabia de um médico que resolvia essas questões e o dia e o horário já estavam agendados, ela iria se livrar daquilo, eles iriam se livrar, ao que o marido respondeu que não a acompanharia, que ele não poderia levá-la. Ele jamais a levaria.

No dia marcado, ela tomou a menina, caçula, e o menino mais velho pelas mãos e saiu de casa. Por que nós vamos de ônibus para a casa da tia G., mãe? Porque o seu pai não pode nos levar, ele está trabalhando. Ao desembarcarem na rodoviária da pequena cidade, ao contrário das expectativas das crianças, que imaginavam que seu destino seria um lugar familiar, rumaram num táxi para o consultório do médico, onde a menina e o menino foram deixados na sala de espera, um relógio de parede emitindo o ruído das horas, as mãos da menina se abrindo e se fechando sobre o sofá grosseiro, duro como as paredes que sustentavam quadros onde se viam cenas campestres emolduradas por madeira cor de mogno, os dedos falhando na tentativa de se agarrarem a algo.

Décadas mais tarde, a menina conta o ocorrido para a sua filha, uma mulher para a qual a ideia de engravidar sempre soou estranha. A filha imagina se o aborto foi feito como em O acontecimento - livro no qual Annie Ernaux relata a experiência dolorosa e praticamente indizível de um aborto que lhe aconteceu na juventude, quando a França, país onde vivia, ainda proibia a prática - ou de outra forma. Imagina o que passava pela cabeça da avó quando estava no ônibus, com duas crianças, a caminho de uma cidade do interior, e o que ela pensou e sentiu depois de sair do consultório. Ao imaginar, a filha escreve, podendo agora se agarrar a alguma coisa.

---

A minha avó era um bebê quando foi levada para um internato de freiras, junto da sua irmã, pouco mais velha que ela. A mãe delas, acometida pela hanseníase, havia sido encarcerada num hospital, no qual, anos depois, viria a morrer, sem nunca ter saído de lá. O pai das meninas, meu bisavô, prontamente se casou com outra mulher e, dos três filhos que havia tido com a minha bisavó, ficou somente com o mais velho, um homem. 
 
Minha tia-avó se tornou ateia; minha avó odiava freiras, ou o que elas representavam, com todas as suas forças. Cresci ouvindo as duas relatarem algumas das coisas que haviam visto e vivido no internato e, das frases que ficaram na minha memória, a que me veio agora, enquanto escrevo, na voz da minha tia H. é “as freiras não tinham coração”. 
 
Já ao terminar de assistir Pequenas Coisas Como Estas, filme adaptado do romance homônimo de Claire Keegan que aborda a questão das atrocidades ocorridas nas lavanderias de Madalena na Irlanda, a imagem que imediatamente me veio à mente, junto com os créditos do filme, foi minha avó. Duas palavras formando uma imagem corrida, por extenso. E depois, a do internato, que  não conheci, somente imaginei a partir das palavras que me foram ditas.

Minha tia H., que quando criança teve o mesmo destino da irmã, talvez pelos tantos livros que ocupavam as suas paredes de adulta e pela sua inteligência apurada, sempre me pareceu mais forte do que a minha avó; ou talvez não fosse a inteligência, mas a sensibilidade, a afetividade que nos dirigia, a nós, sobrinhas e sobrinhos, a maneira como se derretia conosco e com qualquer outra criança, a forma como sentia compaixão pelas pessoas, que, paradoxalmente, a fizessem parecer mais forte, mais coesa, mais humana. Tia H. era muito diferente da minha avó, que gostava de me presentear com brinquinhos de ouro, bolinhos de espinafre, doce de abóbora sem coco e farpas, muitas farpas. Dois bicudos não se bicam, ela dizia. Nós não nos bicávamos e pouco nos afagávamos. E ainda assim, por todos os outros motivos do mundo, são essas as duas palavras que mais me fazem falta.

Minha avó.

sábado, 12 de abril de 2025

Tia Virgínia ou estar aqui de passagem



Final da tarde de um dia ensolarado em Santos. Entro na pequena sala de cinema à beira-mar acompanhada pela minha mãe para vermos um filme sobre o qual temos uma única informação: é com a Vera Holtz.

Sala lotada. Chegamos com algum atraso, cinco minutos no máximo, os quais foram suficientes para quase não conseguirmos ingressos e para nos privar da primeira cena que, agora, ao assistir ao filme pela segunda vez, entendo ser essencial para a narrativa; não só a primeira, aliás, como também a última, numa amarração muito bem feita do roteiro, dessas que dão gosto de ver.

O filme termina e me pego meio nocauteada, saindo da sala em silêncio e com a última cena grudada na retina. Respiro e olho o mar que está logo ali, aquela imensidão de água em movimento, o mar, leve e denso, uma das melhores representações da liberdade. Não digo para a minha mãe tudo o que vai pela minha cabeça, pois naquele momento penso em questões que acometem grande parte das famílias e que ficam mais pungentes na época das festas de final de ano, especialmente no Natal, que é exatamente a data em que a história se desenrola. Penso nessas questões e também na minha avó e na minha tia-avó, cujas demandas por cuidados, por períodos maiores ou menores da vida da minha mãe, achei que acabariam por deixá-la doente, por deixá-la louca.

Depois disso, levei o filme por dias a fio dentro de mim, o quadro da última cena sempre se repetindo, eu pensando que gostaria de ter aquela imagem pendurada na parede do meu consultório.

Um ou dois anos se passam e Tia Virgínia, cuidadosamente guardado nos meus registros internos, volta à baila quando o Sesc Sorocaba me convida para a curadoria de uma mostra sobre narrativas do envelhecimento. O filme de Fabio Meira, que em 2023 rendeu o Kikito de Ouro no Festival de Gramado para Vera Holtz, é um dos primeiros que aparecem na tela do computador quando começo a digitar a lista de filmes para a mostra. 

Revendo Tia Virgínia, percebo que não foi à toa que ele se colocou naquela lista. A obra aborda não uma, mas várias questões relativas ao envelhecimento, como os cuidados com quem envelhece e com quem cuida de quem envelhece (e que muitas vezes também é alguém que já está em alguma fase do envelhecimento), como e por quem é feita a escolha ou a imposição dos cuidados, quem paga, quanto paga e, mais precisamente, com o que se paga por isso, sendo esta última questão habilmente encarnada pela personagem de Vera Holtz, a Tia Virgínia.

Virgínia é uma mulher na casa dos 70 anos que, por uma espécie de imposição de suas duas outras irmãs, mudou-se para a casa da sua infância para, entre paredes, móveis e objetos repletos de recordações, cuidar de sua mãe, de 99 anos. Única das três irmãs a não se casar e a não ter filhos, Virgínia, quando jovem, queria ser atriz e chegou mesmo a participar de uma montagem de A Casa de Bernarda Alba, peça de Federico García Lorca, tendo, no entanto, sua carreira abortada pela família, para a qual aquela não era uma profissão aceitável, não para uma mulher.

À medida que o filme vai se desenrolando, contudo, fica claro que Virgínia não perdeu a sua verve teatral. Desde o início, ela nos reserva, e aos seus familiares, uma grande surpresa, um último e também um primeiro ato. A tensão que prende o espectador à tela do início ao fim do filme não se restringe à gama de sentimentos que se desprendem dos enfrentamentos que são característicos das reuniões de família; a tensão é principalmente criada pela performance de Virgínia.

O sujeito não envelhece, é o que se diz em psicanálise, o que, de maneira extremamente resumida, quer dizer que o inconsciente não tem idade, e penso que Virgínia é um grande exemplo disso. Para além de tudo o que viveu até os 70 anos, ou melhor dizendo, do que não viveu até então, ela percebe, de uma forma ou de outra, que está aqui de passagem, e que tanto faz o momento em que o sonho vai tentar virar realidade, em que a pera que se esqueceu dormindo numa fruteira vai acordar. O que importa é finalmente deixar de observar o tempo para finalmente se colocar ativamente em marcha junto dele. 

Entre Um gosto de Sol e Cais, é no movimento que a imagem para e que o último ato da peça encenada por Virgínia se converte no primeiro de uma caminhada, esta, agora, só sua.

Da fotografia do filme, muito bem cuidada, a que eu quero levar para a parede.

---

O filme será exibido no Sesc Sorocaba na próxima terça-feira, dia 15/04, às 19h. Os ingressos são gratuitos e, após a sessão, tem bate-papo para discussão do filme.

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Dor e Glória

 

Na próxima terça-feira, 08/04, o Cine Café do Sesc Sorocaba exibe, como parte da programação de uma mostra que coloca em cena narrativas sobre o envelhecimento, o filme Dor e Glória (2019), de Pedro Almodóvar.

 

Com 186 indicações, o filme teve 72 vitórias em premiações diversas, incluindo o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes de 2019 para Antonio Banderas pela interpretação do personagem Salvador Mallo, alter ego de Almodóvar na película.

 
Salvador é um homem na casa dos 60 anos, um cineasta que se vê diante de uma estagnação provocada por diversas razões, dentre as quais uma grave operação nas costas que lhe causa dores atrozes. Se por um lado Almodóvar afirma que Dor e Glória não é autoficção, por outro, deixa claro que o filme partiu de si mesmo, pois não haveria roteiro se ele (assim como Salvador) não tivesse sido operado das costas e vivido as consequências dessa cirurgia. 
 
No prólogo do roteiro do filme (publicado e disponível para compra), o qual também pode ser lido em matéria publicada no El País, o diretor escreve: “Dor e Glória é um filme baseado na minha vida? Não, e sim, absolutamente. (...) Quanto às minhas relações com os outros, Dor e Glória não é um filme no qual se procura quem se esconde por detrás dos personagens. Claro que parti de sentimentos próprios reais, mas me serviram para escrever a primeira linha. O resto é inventado, imaginado, impulsionado pela força da ficção. Tudo no meu cinema é representação, sempre fugi do naturalismo, não pretendo que meus filmes pareçam reais. Mas pretendo que o espectador se reconheça neles.” 
 
E é exatamente isso o que acontece com Dor e Glória, ou pelo menos o que aconteceu comigo quando o vi pela primeira vez (felizmente na telona do cinema, o que faz toda a diferença), no ano em que foi lançado por aqui. Saí do cinema aos prantos, sem conseguir conter os soluços e sem entender o que estava acontecendo comigo. Somente muito depois compreendi: o filme falava sobre a passagem do tempo, sobre envelhecer. Mas não apenas, e só agora entendo isso também. Dor e Glória é sobre dor, mas também, e principalmente, sobre desejo. Sobre a escrita da vida e do cinema. Sobre solidão e estranheza. Sobre amores e sobre a importância de amar. É sobre aceitar a dor e a glória de existir em meio à transitoriedade, sobre aceitar a passagem do tempo e o que ficou para trás.
 
Ainda que eu tenha assistido em looping numa madrugada ao A Flor do Meu Segredo, que eu tenha ido ao cinema três vezes numa única semana para ver Fale com Ela e que todos os outros filmes de Pedro Almodóvar tenham influenciado os meus pensamentos e escolhas estéticas e feito do mundo um lugar mais acolhedor para a minha própria solidão e estranheza, Dor e Glória segue sendo para mim, desde que o assisti, o maior (ou pelo menos o mais maduro) e mais generoso filme de Almodóvar.
 
A sessão do dia 08/04 terá início às 19h, no teatro do Sesc Sorocaba. Os ingressos são gratuitos e, após a exibição, o filme poderá ser discutido ao longo de um bate-papo.

sábado, 1 de março de 2025

A estranha familiar

"Alma-menina no tempo? Não, ela não se envergonhava de seu narcisismo. Era com ele que ela compunha e recompunha toda a sua dignidade. Encarou novamente o espelho e se lembrou de um poema, em que uma mulher, contemplando a sua imagem refletida, perguntava angustiada onde é que ela deixara a sua outra face, a antiga, pois não se reconhecia naquela que lhe estava sendo apresentada naquele momento."

Do conto Luamanda, de Conceição Evaristo, em Olhos d'água


Eu tinha trinta e nove anos quando olhei no espelho e não me reconheci. Foi então que a dermatologista que procurei alguns dias depois me contou, como quem revela o óbvio a alguém muito distraído, que chega uma hora em que o rosto derrete.

Desde então, venho acompanhando o derretimento dos meus traços e só agora, ao escrever, percebo que o esgarçamento dos meus tecidos não seria tão ruim assim se a coisa toda se restringisse ao corpo. O grande problema é que o desabamento muscular vem acompanhado de uma espécie de esmagamento narcísico por uma bigorna que despenca, sem aviso prévio e pesando toneladas, sobre o aparelho psíquico. Para além da realidade, o real, aquilo que não pode ser nomeado exceto talvez pelo nome de angústia, desabou recentemente sobre a minha cabeça, deixando claro, mais do que nunca e por vias que não passam pelo intelecto e pelo pensamento racional, que não é o rosto que escorre, mas a vida.

Olho novamente no espelho e pergunto para essa nova mulher de quarenta e seis anos que apresenta uma ruga persistente sobre a sobrancelha esquerda, marcas do chamado bigode chinês, alguma flacidez sob o queixo, olheiras mais fundas e aparentes e que não sabe se e quando vai menstruar novamente, o que você fez até aqui, o que você vai fazer daqui pra frente, com o tempo que resta?

Envelhecer dói. É como cortar bem fundo a pele em duas metades. A metade jovem e a metade velha. É o corte que se abre nas costas de Elisabeth em A Substância, para que a jovem Sue possa nascer. Sue, uma outra que é também Elisabeth mas que ao mesmo tempo é uma completa estranha. Paradoxalmente, no filme, a estranha que nasce é uma jovem; na vida real, a estranha que está nascendo em mim vestirá a metade velha da pele, o pedaço novo que surgiu a partir do corte. Assim posto, de repente me parece que envelhecer talvez seja algo da ordem do impossível e tautologia é a palavra que me ocorre, embora muito provavelmente ela não seja a correta. Envelhecer é sempre verdade, mas também é uma grande mentira.

Envelhecer dói. Nascer também.

Sobre o futuro

Ata-me, é o que me vem à mente quando olho para o branco estampado na tela do computador. Me dá um nó, me amarra à vida. Não que a sensação de descolamento que venho sentindo ultimamente seja ruim. Não. É como estar permanentemente pisando em uma camada de algodão, como flutuar; é de uma leveza que eu não conhecia, ou melhor, de uma leveza que conheci há muito tempo e da qual já havia me esquecido. As causas eram diferentes, o contexto também, mas o descolamento (quase escrevi deslocamento) já esteve lá, já esteve aqui. Menos leve, pois havia uma fissura mais pronunciada, a do tempo, a da preocupação com o tempo, com o futuro. Eu vivia tão à espera do futuro que, quando ele chegou, mal percebi.

---

O futuro, essa coisa lisa e macia, que brilha e explode como as bolhas de sabão sopradas pelas crianças. Horrorizada, maravilhada, eu ando sobre ele.


Sobre o futuro, essa coisa que não existe.

domingo, 8 de setembro de 2024

O lugar

O vestido florido no final, a rua escura no começo. O perdão é mesmo o lugar dos contrastes. Eu não pensava assim, ou pelo menos não com essas palavras, quando falei com você pela primeira vez sobre Tre Piani. O perdão como o lugar do imperdoável, ouvi uma escritora, a Carla Madeira, dizer numa entrevista, mas de outro jeito. Ela disse outra coisa, que em mim saiu diferente, agora, ao escrever. Tudo sai melhor de mim quando escrevo, de forma que às vezes chego a pensar em nunca mais abrir a boca.

É também um filme sobre o perdão, eu falei. O único problema é que a arte imita a vida, mas a vida não imita a arte. Na vida tudo é mais difícil, mais duro, e muitas vezes não há como conversar. Então hoje, passados mais de dois anos da primeira vez que vi o filme, ouvi novamente a entrevista da escritora, o perdão como o lugar do imperdoável, o imperdoável como aquilo para o qual não há conversa que resolva. Ouvi e entendi pois, assim como o filme, eu comecei essa análise muito mais escura, turva, embaralhada, quase embalsamada, de tão mortas algumas partes de mim, a do perdão completamente enterrada, a da esperança e a da confiança perdidas como um náufrago que se vê destituído de sua embarcação. Agora tudo é mais flat, eu disse recentemente, estranhando as sessões, estranhando a mim mesma, estranhando o perdão. Assisti Tre Piani novamente, eu falei, e ultimamente tenho me policiado para não girar o tronco na sua direção para olhar nos seus olhos enquanto falo, para me manter reta no divã, encarando aquele quadro que a cada sessão me diz uma coisa diferente e os livros que querem me dizer tudo, sinto vontade de levantar e puxar alguns da estante, tê-los ao meu alcance, sobre o meu colo, cobrindo o meu ventre, as minhas coxas, vi Tre Piani e dessa vez pensei diferente (ainda teimo em chamar sentimento de razão), pensei que a arte imita a vida e que a vida pode sim imitar a arte.

Na primeira vez eu mal percebi a lei que atravessa a tela a quase todo instante, o processo que é usado como remédio e também como marcador do tempo. Freud amava os escritores e a mim me parece muito claro o porquê. Em Não fossem as sílabas do sábado, a protagonista criada por Mariana Salomão Carrara diz que quando se está com muita raiva de alguém ou não se consegue sentir mais nada, ou ambas as coisas, nada é mais eficiente do que iniciar um processo e eu penso em todas as dores, frustrações, mágoas, em todo o desprezo e em toda a indiferença que já circularam pelas folhas e pelos corredores do poder judiciário, as varas de família, em especial, fazendo o que podem para remediar, de forma mais ou menos capenga, a nossa falta de jeito para nos relacionarmos com os outros e para lidarmos com nós mesmos.

Nanni Moretti disse, numa entrevista, que o escritor israelense Eshkol Nevo, autor do livro homônimo do qual  Tre Piani foi adaptado, declarou, após assistir ao filme, que ele esperava e cria que aquele filme corajoso permitisse aos que o vissem perdoarem a si mesmos e aos outros e eu penso que isso vale para o filme todo e não só para Lucio, o personagem que centraliza a questão do abuso sexual levantada no filme.

O processo que se instaura em razão do ocorrido entre ele e Charlotte, a neta de seu vizinho Renato, a quem Lucio imputava um suposto abuso da sua filha Francesca, parece transcender a esfera judicial e funcionar como o instrumento que a protagonista de Não fossem as sílabas do sábado descreve, essa coisa que vai lentamente sugar e arrogar para si as desavenças e traduzi-las numa língua que quase não é a sua. No filme, o luto de Giovanna, esposa de Renato, os sentimentos da mãe de Charlotte e a rejeição sofrida por esta são despejados num processo cujo julgamento é o marco do final dos primeiros cinco anos do filme, o qual, ao todo, soma dez. Tal extensão no tempo não existe no livro de Eshkol Nevo, tendo sido introduzida no filme por Nanni Moretti, e eu penso que o interessante aqui talvez seja o fato de que da mesma forma que um processo tem seus ritos e tramitações próprios, com prazos contados em medidas de tempo, a estrutura de Tre Piani é montada sobre acontecimentos de vida e de morte, os quais funcionam como marcos temporais que acometem a todos nós e que nos fazem sentir a passagem do tempo. Antes e depois, divisores de águas.

Uma mulher grávida prestes a parir que é posta em cena atravessando a noite em busca de ajuda para ir até o hospital enquanto um carro em alta velocidade é freado por uma parede, não sem antes matar uma pessoa. Entra em cena a lei, os pais do motorista Andrea, Vittorio e Dora, ambos juízes, ele, no dizer de Nanni Moretti, o personagem que usa a máscara da integridade moral, da lei. Dora, a meu ver, a personagem mais interessante do filme e aquela à qual eu mais me afeiçoei. A rigidez do pai com o filho, o espancamento daquele por este, a escolha imposta a Dora, a escolha que ela faz, as consequências. A morte de Vittorio, marcando mais uma vez a passagem do tempo, dez anos, o encontro de Dora com Luigi, o reencontro dela com Andrea. A minha cena preferida, Dora dentro de um carro telefonando para o número de telefone de sua casa e falando com o marido morto por intermédio da secretária eletrônica, por que, ao longo da vida, nós não nos permitimos mais, ela ouve o bip do aparelho e desliga, mais de uma vez faz isso, como se não fosse possível falar com Vittorio sem um intermediário, como se não fosse possível seguir falando, escutando, sozinha, a própria voz.

Monica, a mulher grávida do início do filme, a solidão, o medo da repetição da loucura da própria mãe. A entrada de Dora em sua casa no momento do primeiro banho da bebê, Monica lhe dizendo que com ela ali as coisas pareciam mais reais, e eu me vejo na cena, sem um terceiro, sem um olhar, sem o outro, a realidade fica inefável, insustentável demais para ser real. Monica e o grande pássaro negro, Monica que sonha, delira, alucina, o cunhado, o sexo, a ausência quase permanente do marido, a segunda filha, será que eu vou conseguir, e ela enlouquece. Enlouquece? Ainda não consigo dissociar a sua loucura da liberdade da dança, da música, da festa que invade os cômodos do prédio de três andares e coloca os seus moradores em outra perspectiva, na rua, como observadores, como pessoas alheias às suas próprias realidades por algum tempo.

Dora, de novo ela, a morte de Vittorio abrindo uma janela para outras formas de vida, para as cores, para o amor. É muito difícil amar com rigidez, venho aprendendo, e Dora me lembra a minha mãe, o que só agora, escrevendo, percebo. A minha mãe diz, que vestido deslumbrante, e no final Dora aparece, solar, com o vestido florido, deslumbrante. O filme termina e pela segunda vez eu me emociono, sem saber de que lugar vem o choro.


O imperdoável, o lugar do perdão.

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

E a nave vai*

Sentada à mesa de um bar agito a mão na qual seguro um copo de cerveja e digo que daria um dedo para ter de volta o mundo que existia antes da pandemia. No dia seguinte, sentada numa sala de cinema, penso que daria dois dedos para ter de volta o mundo dos objetos ao qual Aksel, o personagem na casa dos 40 anos de A Pior Pessoa do Mundo, faz referência. Lembro então que também já cheguei a pensar, olhando para a água que escorria do chuveiro, que daria um braço para poder me despedir de uma pessoa que eu amava muito e que morreu de repente. O porquê de viver pensando em me fragmentar eu não sei, mas para me conter escrevo com as palavras que vão sendo continuamente projetadas nas paredes do meu crânio, como se fosse eu também uma tela de cinema.


Tentando curar alguma coisa, escrevo uma mensagem na qual se lê que de ressaca a coração partido o cinema sempre foi o meu lugar de cura. Deborah Colker coloca dois homens, uma grande atadura e Leonard Cohen juntos num palco e tenta curar a dor que vem da doença incurável do seu neto Theo. O jeito que ela tem de tentar se curar me faz chorar.

Leonard Cohen me arremessa no corpo das lembranças de uma grande paixão, vivida na mesma intensidade dos festivais de rock e da pulsação inerente às ruas de cidades como Paris, Londres e Berlim, uma paixão que tirou da cartola o mapa do mundo e o colocou nas minhas mãos, não sem antes me mostrar os truques que eu precisava saber para me orientar sozinha nele. Eu sempre penso na raridade desse encontro.

Num outro planeta, mais concreto e ordinário, um homem pelo qual eu estava me apaixonando me diz, nós temos tempo de sobra para ver se vale a pena viver esse amor, e enquanto ele dizia eu escrevia, pensando, que porra é essa, do que é que ele está falando, quem tem tempo sobrando para esperar viver qualquer coisa, quem dirá um amor?

Os créditos de Dor e Glória sobem e eu saio do cinema soluçando e pensando que se Pedro Almodóvar tivesse feito só esse filme ele já teria sido um dos diretores mais fantásticos de todos os tempos. Os créditos de Tre Piani sobem e eu penso, contendo os soluços, em Dor e Glória. Os dois filmes falam sobre o tempo e sobre o envelhecimento, mas isso eu só percebi depois.

Uma personagem de Tre Piani pergunta ao marido morto, enquanto deixa uma mensagem na secretária eletrônica, por que, ao longo da vida, eles não se permitiram mais. Voltando do cinema ouço no carro aquela música que diz que hoje o tempo voa, amor, escorre pelas mãos, mesmo sem se sentir, e que não há tempo que volte, e novamente eu penso, quem é que tem tempo de sobra?

Julie, a protagonista na casa dos trinta anos de A Pior Pessoa do Mundo, tem muitas dúvidas e um pai indiferente. Eu tenho muitas dúvidas mas na casa dos quarenta descobri que escolher também é ser livre. Meu pai continua indiferente.

Com música e dança deslocadas na rua, Nanni Moretti suspende o tempo em uma das cenas finais de Tre Piani e o atravessa com a loucura da personagem que não suportou ser mãe. Eu imediatamente penso em Fellini e me vejo sentada diante de Amarcord e de E la Nave Va. Subi a montanha mágica de Thomas Mann, folheei Mário Schenberg e me encantei com Bergson, mas até agora não descobri o que é o tempo.

Eu digo que não choro nunca mas sempre me pego chorando. Eu digo que não me rasgo mais e logo em seguida passo uma noite e um dia inteiros me rasgando. No carro a caminho de casa ouço a Tati Bernardi dizer que a potência está justamente em se rasgar. Eu entendo, com a carne, e penso que é melhor viver de peito aberto, ainda que rasgado, do que morrendo afogada.
 
 
* Texto originalmente publicado neste blog em 30 de maio de 2022.

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Holy Spider*

Tenho sonhos elétricos, o pai diz à filha, a movimentação no entorno da mesa à qual estão sentados intensificando a necessidade de foco do espectador na cena que se desenrola no primeiro plano.

E você, quais são os seus sonhos?

Acordo e percebo que algo havia se perdido. Tive um sonho ruim, falo, enquanto conto com palavras as imagens que me fizeram acordar angustiada, aliviada, foi apenas um sonho.

Ruas escuras, muros altos, vielas, labirinto. Outro sonho, cabeças e cabelos cobertos, rostos apreensivos. Procuro, não tem saída. Eu vou arrebentar a sua boceta, diz a legenda, traduzindo o intraduzível. Quem inventou as palavras? Como foi que elas vieram parar nas nossas bocas? Paradoxos do enlouquecimento, elas parecem nunca estar à toa, nunca ser à toa.

A minha casa é dos meus filhos, não é lugar para levar mulher, e os meus olhos se fixam com mais atenção na cena para depois se desviarem do resto do filme. Muito barulho por nada seria um bom título para ele, penso, enquanto os resquícios do áudio derramam uma cagação de regra que levanta uma parede de certezas em dry wall - alvenaria é luxo de outros tempos -, mas aquele título já foi usado há centenas de anos, no século dezesseis, salvo engano, por um texto, esse sim, contemporâneo.

Tenho uma amiga muito poderosa na vida que pelo menos na cama quer ser mulher, ou seja, estar abaixo do homem. Suspendo a respiração para ler com atenção até constatar que é isso mesmo o que está escrito. Inspiro, expiro pela boca, uma, duas, três, quatro vezes. Mas que legenda é essa? De qual roteiro saiu essa lógica? Quem escreveu esse filme longo, repetitivo e chato? Lippy e Hardy, o desenho, penso nele sem parar. A hiena que, ao invés de rir, passa os dias a se lamentar, a se ressentir.

O melhor o tempo esconde, longe, muito longe, mas bem dentro aqui, a voz do Caetano muito alta reverbera dentro do carro, os rastros deixados pelos meus pensamentos marcando o tempo que fica na estrada, Trilhos Urbanos que sucedem uma Elegia, nudez total, todo prazer provém do corpo, como a alma sem corpo, sem vestes, como encadernação.

No final das contas somos vazos preenchidos por vazios de tempo e por palavras que entregam todas as nossas sementes. Aniquilação, destruição, desprezo, humilhação. Medo, ressentimento. Mas do quê? O esforço constante, eterno, derrapante das palavras. Exceto quando cortam, como facas. Annie Ernaux, Virginia Woolf, a recusa da escrita como feminina ou masculina; Cixous, o contraponto. Inspiro e expiro pela boca novamente. Estou cansada. Não sou homem nem mulher, sou gente, e também sou bicho. É assim que eu escrevo, é assim que eu vivo. Gente, como qualquer outra mulher.

O problema é que eles não sabem ler.


sábado, 10 de agosto de 2024

Twist in my sobriety

Mas tá um pouco apaixonada? Tem que estar, né, baby, senão não tem graça. Uma paixonite pelo menos, vai? Olho para a frente e depois para o lado fazendo a curva à direita e deixando a Avenida Ipiranga para trás. Engasgo, respondo, não sei se sou sincera. Paixão, paixonite, amor, qual é a diferença entre essas palavras?

A frase diz em voz alta, gravava cartas de amor em vinil, era nítido que estava muito apaixonado. Mas as cartas eram de amor ou de paixão? Enquanto a água escorre e leva a espuma que recobre as facas que seguro sob o jato d’água, deixo escapar em voz baixa, quais são as palavras que alguém usa para dizer eu te amo?

Toda nudez será castigada e no entanto eu me sinto absolutamente impune dentro da minha, exceto pelo espelho muito quadrado que me olha do alto como um juiz, como o duplo que me olhava de cima, imóvel, na diagonal de um dos cantos da biblioteca excessivamente iluminada onde eu lia O Livro Azul.

As suas roupas são predominantemente pretas e cinza, como as minhas, e estou de volta às imediações da Avenida Ipiranga depois de uma caminhada em linha reta pela Higienópolis. No verso da Maria Antônia seus braços, peito e boca são quase uma poesia, exceto pelo que não é. Árido Movie, você assistiu? As câmeras ao nosso redor nos observam inertes de dentro de suas capas. Veja como pesa. Seguro uma delas com as duas mãos e tudo o que vejo é movimento, o Vietnã se abrindo em imagens e palavras, um livro. E depois? Depois seguir e não voltar, fantasia de quem só se sente real em outras realidades, de quem sente o radical da alteridade como um remédio.

O livro que você me entrega é quase tão pesado quanto as suas câmeras e as histórias que ele abriga saltam das páginas para a mesa de um restaurante peruano barato no centro de São Paulo. Certa vez vi um rato passeando por entre as mesas mas não me importei. Lembro do rato e sigo sem me importar. Só o que me interessa são as crianças que nunca veem o sol e a bailarina que são duas, uma que sorri abertamente longe da casa em que cresceu e outra que é triste perto dela. Por cima da mesa o meu olhar engole as Américas que surgem nas suas palavras da mesma maneira que os seus olhos me mastigam quando você me vê andando nua pelo apartamento minúsculo em direção ao banheiro ou desfilando pela sala da sua casa, escova de dentes elétrica em punho. Deixo claro que tenho duas delas e você ri ainda mais, como uma criança que se diverte com um brinquedo novo.

O nosso jogo é uma brincadeira de criança em corpo de adulto onde só não entram os joguinhos infantis. I Drove All Night no repeat intercalada com a sua voz, chamadas telefônicas como as que fazíamos quando éramos adolescentes. Dirijo mais de uma noite assim, numa ligação com você, mas chego mais tarde do que o esperado e não consigo olhar para aquilo que em você é tão diferente do seu corpo. Você de fato poderia me esmagar como a um brinquedo que não se quer mais, mas no fim sou eu quem não consegue segurar aquilo que o peso das suas câmeras não revela. Só as lentes.

Eu sei que eu te machuquei.


O tempo, lógico.

quinta-feira, 18 de julho de 2024

Losing my religion

Deserto do Saara/Marrocos


São cinco horas da manhã, o mesmo horário do meu fuso ao contrário. Do o
utro lado do mundo eu despertava - literalmente, já que me punha de pé com todos os sentidos prontos para se atirarem do quadragésimo andar -, todos os dias, às cinco horas da manhã.

Eram cinco horas da manhã quando olhei as horas no relógio. Relógio não, celular, pois atualmente quem é que olha as horas num relógio? Posso até responder que eu sim, mas somente às vezes, no mesmo relógio que aquele homem plantado no meio de um deserto insistentemente pediu que eu lhe desse em troca de algo, o homem que eu pude ver, enquanto o carro saía, despido da túnica com a qual havia nos recebido e que nos olhava com um misto de sentimentos que eu não quero nomear aqui. Senti pena dele, senti pena deles.

Cinco horas da manhã, os meus olhos agora muito abertos olham diretamente para a parede depois de terem olhado para a tela. Aprendi que a forma, em associação livre, é tão importante quanto o conteúdo, e que o tempo cronológico, dentro dessa forma, é puramente lógico. Procuro dentro da minha cabeça um lugar para me instalar, um espaço em branco onde nenhum tempo exista, mas o som que atravessa as paredes do quarto me confunde e eu fico girando em falso pelas vielas que me compõem, buscando sem encontrar uma origem e um sentido para o barulho que havia me acordado.


São cinco as pontas da estrela, são cinco as orações diárias. Eram sempre cinco as horas quando eu ouvia o chamado.


Azul cor de mar de revista, verde e vermelha a bandeira, telhados também. Um carneiro é arrastado e grita ladeira abaixo em meio à multidão multicor. Véus, túnicas, rostos expostos e cobertos, olhos que olham com a mesma curiosidade que os nossos. Estranhamento. Um chá muito verde, a menta que me faz lembrar, antes e agora, das coisas mentoladas das quais desde criança eu gostei. Gosto. O chocolate, o chiclete, o sorvete, o cigarro. Familiaridade. Ruas estreitas, um labirinto incrustado numa joia moderna. O nome é lindo e eu gosto de tê-lo dentro da minha boca. Escolho cidades também pelos seus nomes e homens também pelas suas vozes, pelas palavras que utilizam. Mesmo não entendendo nada do que é dito no seu idioma materno eu tento repetir as poucas palavras que ele me ensina como só uma aluna muito aplicada faz. Pronuncio e repito até tentar acertar, até talvez acertar e sentir uma pontada de um imenso prazer íntimo com aquele feito aparentemente simples.

Outra cidade, pintada com a cor do mar da primeira, cujo nome eu giro na minha língua e engulo nos dias seguintes com o sol que cai atrás da montanha que carrega as casas pintadas de azul e com o sangue dos carneiros sacrificados que escorre, abundante, pelo meio-fio. Na outra grande festa não se matam animais, ele me explica depois de alguns quilômetros, o meu esforço para não apagar pesando no ar condicionado.

A terra absorve o sangue, mas não por completo. Eu quero, mas é difícil engolir o carneiro naquela noite. Emagreço. Mais. Muito magra, ela me diz, e eu lembro de um sonho ocre que sonhei ter escrito. Fragmentos, os nossos, abandonados na porta de um quarto. Mais uma vez o tempo lógico. O escritor brinca com as palavras, cria oásis verdejantes no deserto, sóis muito amarelos, dunas que mudam de cor ao longo do dia, da noite, da lua, montanhas cujas formas nos fazem parecer mais insignificantes do que olhar para o céu em noites estreladas. O escritor cria até o que não existe, cria o tempo. Fiat lux, duas palavras, e o mundo começou, da mesma maneira que o jorro de água quente que alcançou o meu corpo inerte sobre a bancada me levou até o início, até o lugar que era somente corpo a ser embalado por mãos macias besuntadas em óleo de oliva e depois esfregado, a pele arrancada, peau de bébé, ela me dizia rindo, um riso genuinamente alegre e doce, diante do meu espanto ao ver pedaços de pele soltos pelos meus braços. Doux, ela falava enquanto me esfregava como a um bebê, como se eu fosse uma boneca agora sentada sobre a bancada, as pernas soltas no ar, os braços abandonados ao longo do tronco, e eu ficava ainda mais espantada ao sentir a lateral direita do pescoço arder sob a bucha com a qual ela me esfoliava, espantada com a força da suavidade e com a minha entrega ao não dizer nada, ao não querer controlar nada, ao desejar apenas que o calor, o cheiro de azeitonas e de argan e as mãos e o riso daquela mulher durassem a eternidade que pudessem durar.

O controle se desfaz como a areia do deserto, que eu devia ter colocado num potinho para trazer comigo. Não, não é como a da praia, é diferente, tem outro movimento, outra textura, outras cores. Escorre pelos dedos num outro tempo, de outra forma. Invade todos os poros, todas as reentrâncias, para depois desaparecer. Não sei aonde vai parar, onde começa, onde termina. Perco o controle, choro ao ver o sol despontar no horizonte, uma meia-lua amarela exuberante, a sensação de poder apanhá-lo e comê-lo como se fosse um quindim, doce, macio, úmido. O sol do deserto é úmido e o das montanhas canta, venta, se faz presente a cada parada, a cada mirante, a cada fotografia. Choro novamente, o controle que vá para o inferno, não me interessa mais saber itinerários, cardápios, não quero mais ter sinal de celular nem notícias de um mundo que não está ali, tátil, visual, sonoro. Quero apenas conjugar tempo e espaço, transformá-los em verbos e pronunciá-los em todas as pessoas.

Toco por alguns segundos com os meus dedos cheios de areia o impossível, o sentido do absoluto sem sentido que é a vida, a pele do meu pescoço, sensível como a de um bebê, recebendo o sol que entra pelo vidro dianteiro do carro. O sol quindim, perecível como a vida, se não comer estraga, a minha pele sabe disso e o engole com todas as letras para depois derramá-lo onde e como bem entender. O eterno retorno, as minhas ausências, as minhas certezas, todas revolvidas.

O parafuso que afrouxa mais uma volta.