segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Mais difícil é não acreditar em fantasmas

"Sabe-se que o obsessivo é um misógino, mas não por quê. Ele odeia as mulheres porque odeia seu próprio desejo. Detesta desejar, e as fêmeas provocam tal e tanto desejo. (...) Os obsessivos, menos corajosos, conformam-se com matar-lhes o desejo esmagando-lhes as demandas. (...) 'Faz de mim o que quiser' ofereceu. Ele rompeu com ela."

Ricardo Goldenberg, na saída de Desler Lacan (2ª edição, pp. 303/304)


"O amor só é bom quando medido, de outro modo torna-se terrível. O amor sem limite é arrasador. E o amor perde o limite quando associado ao desejo. Mas estas são considerações covardes. Para Lacan, o amor é paixão ou não é. O amor é sempre ilimitado, quando não é morno por estar dissociado do desejo. Mas ali não é amor, talvez amizade."

Idem, pp. 310/311


"Romantic sponges, they say, do it
Oysters down in oyster bay do it
Let´s do it, let´s fall in love"

Let´s Do It (Let´s Fall in Love), Cole Porter




Duas amigas conversam num carro em movimento numa noite parcamente iluminada pelas luzes amarelas de postes de iluminação esparsos quando, ao acessarem uma estrada antiga e meio fantasmagórica há muito abandonada pelo trânsito local, ouve-se uma delas dizer, a propósito da conversa que estavam tendo, será que ninguém pára pra pensar que difícil mesmo é viver sem ver fantasma, sendo praticamente obrigada pela realidade dura e crua de não existir segunda chance a levantar a bunda do sofá mesmo quando a preguiça e o medo são tamanho monstro e ir lá viver o que tem que ser vivido? Sabendo que não, você não vai voltar pra viver tudo de novo e ter novas e novas oportunidades de assistir àquele filme que você perdeu ou de conhecer pessoas interessantes nem vai ficar infinitamente rodando no espaço sideral numa espiral de encarna e desencarna até resolver tudo com todos? Seria bem conveniente, mas não. Então, numa boa, minha vontade é acender um letreiro em determinadas situações com os seguintes dizeres: não desperdice o nosso tempo tentando me convencer a ver fantasmas. Eu sou e eu gosto de carne, e de osso.



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O casal, formado pelo algoritmo do amor moderno, vomita virtualmente os seus restos. A certa altura da conversa, ela vê surgir na tela uma ideia de relacionamento que parece tirada de uma forma obsessiva untada com pinceladas de sadismo. Ele sentencia, vejo mais como passos. Ela, surpresa com o veredicto, pede um esclarecimento, como um organograma? Isso, ele bate o martelo, organograma.

O mundo gira mas a palavra vem e vai, vai e volta, fica repicando na cabeça dela. Organograma. Organograma do amor. Como pode isso do amor caber num organograma? E amor esquematizado lá é amor? O que leva alguém a querer encaixar o amor num esquema, a ter a pretensão de achar que a vida, tomada ou não sob o aspecto amoroso, é algo que cabe num plano esquematizado, num gráfico, na, que a desculpem os mais sensíveis, porra de um organograma?



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Ela: O tempo só existe nos recortes que a gente faz nele, assim como a realidade pode ser mais ou menos fantasmática dependendo dos recortes que a gente faz nela. Eu não acredito em fantasmas e acho que é mais difícil assim, embora muita gente diga o contrário. Os monstros e as criaturas perigosas do sonho da noite passada eram reais, pois estavam dentro de mim. Chegavam por tubos e alguns eram impulsionados por molas. Era como um parque de diversões pra eles. Tinha até aqueles carrinhos em forma de alguma coisa, de um sorvete, por exemplo. Havia marrom em quase tudo. Acordei angustiada. Estavam dentro de mim, eram reais, como os fantasmas que as pessoas veem por aí e que são reais pra elas. Eles também estão dentro delas. Eu tenho medo de algumas pessoas da mesma forma que elas têm medo de fantasmas. Sabe aquele conto que ficou muito famoso, Cat Person? Então, não tem tanto a ver com a história, mas eu tenho medo de pessoas que se parecem com gatos, assim meio furtivas. Sabe, eu gosto mesmo de gente que é igual a cachorro.

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