Num dos incontáveis vídeos sobre o coronavírus que estão circulando por aí, uma brasileira que mora na Itália fala sobre as fases da quarentena. Segundo ela, a quarentena tem fases. O que posso dizer, a partir do que estou experimentando neste não tão admirável mundo novo, nesta nova forma de existir, ou seja, isolada e confinada, é que tem mesmo. Só que as minhas fases não batem com as da autora do vídeo, o que, naturalmente, é esperado, já que cada um vai viver e sentir a quarentena a seu modo. Claro que haverão convergências mas, também, inúmeras divergências ou, dito de outra forma, singularidades.
Gostaria de deixar claro que, desde que tudo isto começou, me propus a me observar. Pode ser que eu seja contaminada e não resista ao vírus, pois seguimos, como já foi dito aqui, sem garantias. Mas também pode ser que eu sobreviva e aprenda algo (ou muita coisa) com o que aconteceu. Enquanto os acontecimentos se desenrolam, sigo observando da janela, hora olhando para fora, hora olhando para dentro, sempre com a certeza de que este momento, por mais trágico, doloroso e inesperado que seja, é também único. Não sei quanto a vocês, mas eu nunca imaginei que um dia viveria uma pandemia.
A propósito, o desejo de abarcar o máximo possível das reações subjetivas ocasionadas pelo momento atual é tamanho que, inspirada pelo livro Sonhos no Terceiro Reich, de Charlotte Beradt, decidi relatar e compartilhar os sonhos que vier a ter durante a quarentena, ideia que coloquei em prática no último dia 24, aqui.
Pois bem, retomando as fases, as minhas estão numa constante mescla e oscilação. Não digo que não haja estabilidade; há, mas as mudanças são perceptíveis. Comecei com a aceitação, passei pelo pânico de sair na rua e dar de cara com o inimigo invisível e, no último domingo, senti o clic da adaptação. As coisas iam relativamente bem, até que ontem entrei na fase da irritação e da intolerância. Perdi a paciência com a pessoa mais querida do mundo e passei o dia feito uma barata tonta, já que a irritação é, de todas as sensações, a que mais me desestabiliza. Não digo que tenha passado o dia andando em círculos pelo apartamento. Pelo contrário, trabalhei, fiz exercícios etc. Funcionei conforme o esperado e o requerido, porém, dentro de mim, a barata já estava solta e desnorteada.
Hoje pela manhã, mais uma novidade. Algo não acontece conforme o esperado e eu me pego com vontade de chorar. Como assim? Enquanto tentava entender, vi tudo o que estava acontecendo comigo estampado no relato de uma amiga sobre uma determinada situação, relato que chegava pelo aplicativo de mensagens (outra fonte de irritação e de ansiedade). Estávamos ambas irritadas, com raiva, frustradas. Por motivos aparentemente diferentes, mas os sentimentos eram bem parecidos. A minha irritação era mais difusa, a dela, mais direcionada, porém ambas, guardados os devidos deslocamentos, eram oriundas do mesmo fato, qual seja, este que estamos vivendo, com o qual (todas as consequências práticas incluídas) estamos tendo que lidar e o qual ainda não conseguimos simbolizar.
Porque a real é que fomos de repente jogados num mar de restrições e de frustrações de todas as ordens e teremos que aprender a nadar (ou a flutuar) respeitando essas correntes. Vai ficar cada vez mais difícil, à medida que os dias forem passando, conter a irritação, a frustração, a intolerância e a talvez mãe de todas elas, a ansiedade.
Há três dias venho sentindo uma vontade louca de me jogar na minha balada preferida sem qualquer moderação, num desejo óbvio e ilusório de gozo irrestrito. Ontem escrevi numa rede social que a questão do furo do isolamento tem a ver com o "não queremos parar de gozar". Eu também não quero, mas como vou lidar com o parar, com o não posso, é que são elas. Por ora, o desafio é devolver a barata para o interior do livro da Clarice que, afinal de contas, já está escrito. O meu precisa de calma para acontecer.
P.S.: "Livro da Clarice" é uma referência ao romance A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector.
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