quinta-feira, 16 de abril de 2020

Freud, a série, e o fracasso do divertimento

Freud, a série que estreou recentemente na Netflix, parece ter causado (ou ainda estar causando) um certo furor de likes e deslikes (mais destes do que daqueles). Eu poderia listar os motivos pelos quais dei like mas vou me ater ao único que realmente importa: eu me diverti.

Devorei cada episódio imaginando o que o Freud da série descobriria a seguir e como ele sairia dessa ou daquela enrascada (ao mesmo tempo em que fantasiava uma certa semelhança entre ele e Sherlock Holmes), caí de amores pela doçura de Poschacher (o policial parceiro de Kiss) e me deliciei com a cumplicidade transgressora de Lenore (a governanta). Morri de pena pelo destino de Fleur Salomé até então, cujo beleza sedutora, aliás, enchia a tela toda vez que ela aparecia, e curti cada participação canina com aquela minha típica adoração pela espécie que só se explica pelo fato de eu também talvez ser um cachorro.

Se os fatos eram verdadeiros ou não, se a série estava ou não fazendo um retrato fiel da obra, da vida, do próprio Freud, nada importou. Para a obra, temos os livros escritos pelo próprio Freud, suas correspondências com outros médicos e psicanalistas da época etc. e, para a vida, as biografias. Ali, na Netflix, tratava-se de uma obra de ficção, de uma criação que usou um pedacinho da vida de Freud para dar corpo a uma outra coisa. A proposta da série, obviamente, não é veicular uma aula sobre Freud, sobre sua obra, sobre a psicanálise. A proposta, ao que me pareceu, foi criar uma ficção que se presta ao entretenimento. Não que diversos elementos da teoria freudiana e da vida do próprio Freud não estejam na série. Estão. Os próprios nomes dos episódios já dizem isso. Também Breuer, Charcot, Janet, Meynert, todos estão lá, sendo interpretados ou citados. Martha, o chow-chow, a mãe de Freud, a sua família, o judaísmo, o fracasso da hipnose, pulsão de morte (muita, transbordando da tela), pulsão de vida, repetição, ambivalência, conversão histérica. Todos lá, só que relacionados àquele contexto ficcional. E tudo bem (para mim, pelo menos).

Aí hoje, depois de uma conversa com D., ou melhor, de várias que temos tido e nas quais o tema sempre volta à baila, lembrei de uma outra conversa que tivemos, eu, ela e F., há meses, num outro contexto, no qual associávamos uma certa paralisia social ao fator problematização levada às últimas consequências. Agora, eu e D. temos associado o excesso de polêmicas descabidas não só à paralisia social como ao caos e à chatice. A esta, especialmente. Durante a primeira conversa, estávamos todos, salvo engano, a caminho do aeroporto. Eu tinha um voo de volta para o Brasil e definitivamente não estava a fim de embarcar. Um dos principais motivos, a chatice, ou, como já disse o Cazuza, a caretice. Eu estava, estou, cansada de "tanta babaquice, tanta caretice, desta eterna falta do que falar". E também, confesso, estou cansada de tudo ser levado tão a sério e do que é de fato sério não o ser. É um tal de não poder brincar, de não poder viver sem respostas, sem regras, sem manuais, sem polêmicas, sem direita e sem esquerda. Tudo, do patinete à vida íntima das criaturas, é problematizado ao extremo. Tudo é torcido e retorcido. A pobre da série Freud, inclusive.

Vejam, não estou fazendo uma ode à leviandade. Ao contrário. Aliás, exatamente o contrário. O que mais me espanta é o fato de que enquanto as coisas e as opiniões mais banais são levadas ao ápice da problematização, o que realmente importa, o que de fato é vital para nós, como indivíduos e como sociedade, é problematizado a ponto de ser relativizado, negado, desprezado, atacado etc. etc. Ou seja, a babaquice adquiriu proporções tão enormes e incontroláveis que se chega ao ponto de polemizar a existência de um vírus que existe e que já matou milhares de pessoas da mesma forma que se problematiza se um adulto (repito, adulto) que vai conduzir um patinete (repito, patinete) deve ou não usar capacete (sim, eu não moro mais em São Paulo mas a polêmica dos patinetes no ano passado, que acompanhei principalmente pelas rádios locais que ainda ouço, me deixou absolutamente exasperada). Pois aqui eu pergunto se, diante de tudo o que estamos assistindo no mundo e agora no Brasil (milhares de pessoas já morreram em pouquíssimos meses, sistemas de saúde colapsaram, lockdowns foram impostos), cabe questionar se devemos ou não manter o isolamento social neste momento? Cabe abraçar mil e uma teorias conspiratórias e polemizar ao infinito as possibilidades todas até elegermos um bode expiatório para aplacarmos nossa raiva e nosso desespero diante da impotência? Cabe duvidar da existência do vírus??? Eu, que normalmente não tenho muitas respostas, respondo todas essas perguntas sem fazer esforço: não, não cabe.

O fato é que tudo parece ter que ter um grande propósito, muitas regras e todos têm que se levar a sério e serem sérios o tempo todo. Freud, a série, puro entretenimento, não pode ser boa pois não dá conta do riscado da forma como tem que ser. E qual é a forma que tem quer ser? Não podemos simplesmente nos abandonar à tensão daquele climazinho entre Freud Sherlock e Fleur Salomé que aparece na tela sem perguntar onde está a aula, a teoria, se os fatos batem etc.? Não podemos nos entregar à história de mistério e violência (sim, a violência, a agressividade, o dark side fazem parte de todos nós e que bom poder sublimar isso de alguma forma com a ficção) e nos permitirmos gostar dela? É construção ficcional, não é realidade. E tudo bem, não é sacrilégio. Pode. Pode viver, pode respirar, pode rir, pode gozar.

Até porque o próprio Freud nos ensinou que brincar é paradoxo. Brincar, jamais nos esqueçamos, não só é necessário, mas é muito sério. O que atrapalha, no fim das contas, não é a brincadeira. O que sai caro mesmo é sempre a estupidez.

P.S.1: É da música Vida louca vida, de Cazuza, o trecho da letra de música citado no quarto parágrafo.

P.S.2: É possível acessar gratuitamente a obra de Freud, em Português, aqui.

P.S.3: Interesses biográficos podem ser sanados a partir, por exemplo, das pesquisas de Elisabeth Roudinesco e de Peter Gay.

P.S.4: No último parágrafo deste texto faço referência às obras de Freud O chiste e sua relação com o inconsciente (1905) e O início do tratamento (1913).

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