terça-feira, 5 de maio de 2020

Quebrou não tem mais jeito

"Quebrou não tem mais jeito"


Eu não controlo as palavras, que surgem quando bem entendem. Podem aparecer na estrada, no chuveiro, no meio de uma aula, durante um filme, enquanto lavo a louça. São frequentemente despejadas em pequenos cadernos que deixo espalhados por aí, ao lado da cama, por exemplo, para poder acomodá-las antes de dormirmos. Só que nos últimos dias, nada. Nem nos sonhos elas estão aparecendo, sonhos que, aliás, implodem em poeira de porcelana branca antes que eu tenha a chance de colá-los. Duras que estão as palavras (e talvez os sonhos), imaginei que as tivesse escondido. Afinal, quem quer carregar o peso duro de uma pedra em forma de grito que não sai ou do sofrimento de uma doença que mata aos poucos, cada um de uma maneira diferente, todos os que estão ao seu redor? Quem quer olhar durante as vinte e quatro horas do dia para a dureza de paredes brancas que são não a metáfora, mas a literalidade do (su)real chapado que inadvertidamente e em vários momentos dos dias e das noites aparece no meio do caminho para a geladeira, cuja porta abro pensando que eu daria tudo, qualquer coisa para ter a minha vida de volta?

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"Agora descubra de verdade
O que você ama"


Quando levantar do sofá e ir até a cozinha preparar um chocolate quente te faz chorar você percebe que basta um ato simples, inocente e familiar para que você se veja complemente exposta. E aí você chora e pensa que nunca antes sentiu tanto medo e que estar apavorada te faz irremediavelmente desabar naquele sentimento mais profundo e inconfesso, aquele que você sabe que luta com armas e dentes e com todas as suas mirabolantes estratégias para não revelar. Porque você sabe.

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"Quem vai colar
Os tais caquinhos
Do velho mundo"


Espera, vamos olhar o mapa. Perfeito, é quase fronteira. Sim, mas você não pode esquecer que vai ter que ir pro sul. Preciso te mostrar uns lugares lá. Tudo bem, mas temos que inserir esses dois aqui de cima. Os dois? Sim, eu preciso muito conhecer esse lugar e você também. Você vai ver, vou te mandar tudo o que tenho visto a respeito. Mas são dois países enormes! Tudo bem, a gente dá um jeito. Tem umas bandas de jazz ótimas por lá e dizem que a população é demais. E tem o café, uma série de projetos sociais para conhecer. Você não vai querer perder, né? Ela me olha pela tela do celular rindo e concordando com a cabeça. Desligamos e eu sei, sabemos, que a conversa, normal no mundo de antes, agora soa como um grande delírio.


P.S.: Todos os versos citados são da música Pra começar, de Marina Lima e Antonio Cicero.

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