"Vamos pedir piedade
Senhor, piedade!
Pra essa gente careta e covarde
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade!
Lhes dê grandeza e um pouco de coragem"
Blues da Piedade, Cazuza e Frejat
Tive um amigo, E., que contava que no dia da morte do Cazuza se postou na janela do seu apartamento numa rua do bairro dos Jardins, em São Paulo, da qual gritava: É muito som pra vocês! Para quem não se recorda ou é muito jovem para conhecer a história, Cazuza foi uma das inúmeras vítimas da Aids, doença que, quando surgiu, foi cercada de preconceitos e de rótulos, os quais eram automaticamente transferidos para as pessoas que a adquiriam. Cazuza, embora amado por muitos, foi, na época, achincalhado pela canalha que nunca cansa de dar plantão.
É muito som pra vocês. Acho que desde o dia em que descobri, há não muito tempo, que E. se foi essa frase voltou a pipocar na minha cabeça. Olho ao redor e penso: É muito som pra vocês.
Guido!, ele dizia, nas noites passadas de bar em bar, filosofando, contando histórias e discutindo teses mil que no dia seguinte viravam fundamentação de recurso (os quais costumavam ser ganhos na segunda instância pois a primeira era tacanha demais pra tanto som). Ou durante os dias e ânimos quentes nas salas e corredores daquele prédio no Brás, onde a escrotidão da nossa endêmica desigualdade social tinha a sua vez no formato infância e juventude. Lá começava o processo legal dos meninos que aos olhos da sociedade eram os reis do crime mas que nós sabíamos, porque ouvíamos e víamos, que não. Foi ali que eu aprendi que toda notícia que diz que um jovem pobre, negro e, desculpem o termo, totalmente fodido de 16 anos é um psicopata sanguinário tem dois lados. Ou vários. Tem o lado da mãe do garoto que cometeu suicídio na frente dele, o do pai que justamente morreu vitimado pela Aids ou pela cirrose hepática, tem o lado do menino que cresceu sem nada, só com o sofrimento de no fundo se saber perdido. Mas esses são lados que, nós sabemos, não importam. Nunca importaram. E daí pra eles?
Naquela época eu não me surpreendia com o toque do interfone no meio da madrugada pois eu sabia que a seguir viria o anúncio de que E. estava na portaria. Diga a ele para subir, por favor, e logo o via parado à porta com cervejas numa mão e um vidro de Nescafé na outra. Ouvíamos Baden Powell e Toquinho e Vinícius até o dia explodir na grande janela da sala do meu pequeno apartamento na Rua Caio Prado e E., que subia a pé dos Jardins até a Consolação, ao nascer do sol, fazia o caminho inverso em meio aos vestígios da noite que ficavam espalhados pelo chão diurno da Rua Augusta.
Hoje eu olho para aqueles dias, para aqueles momentos, e fico pasma. Parece que foi um sonho. Por um tempo fomos encantadora e escandalosamente livres e ousados. Como podíamos nos permitir tantas pequenas e deliciosas transgressões de alma? Como podíamos acreditar com tanta convicção que a tragédia irremediável que tentávamos remediar dia após dia era legalmente remediável, mesmo quando os dramas reais das queimaduras, das pancadas, dos hematomas, do aprisionamento, dos gritos em forma de colchões sendo queimados se infiltravam nos sonhos, como faziam nos meus?
Penso que as duas perguntas se completam na qualidade de respostas. Ousávamos porque, além das motivações pessoais de cada um, víamos o que víamos da tragédia humana e sabíamos que não havia tempo nem alegria a perder e acreditávamos porque ousávamos apostar no sonho, no sonho de um mundo melhor, de um mundo onde houvesse comida, diversão e arte por toda parte e não só no nosso quadrado de classe média urbana paulistana. Além disso, éramos vários, e nossas palavras circulavam unidas em mesas de bares e em rodas de samba, em alto e bom som, sem medo de incomodar.
Depois, depois o que aconteceu? Depois doses de uma nova realidade foram aos poucos sendo colocadas nos nossos copos. O som ficou mais abafado e a vida, menos furiosa e mais calada.
Você falou de novo no som. É invasivo, não é? É, eu sempre digo que é. Então. Então era muita vida, é isso? Sim, às vezes, dependendo do momento, dependendo da pulsão de morte, a vida pode ser muito invasiva.
É muito som pra vocês. Sempre foi.
Penso que as duas perguntas se completam na qualidade de respostas. Ousávamos porque, além das motivações pessoais de cada um, víamos o que víamos da tragédia humana e sabíamos que não havia tempo nem alegria a perder e acreditávamos porque ousávamos apostar no sonho, no sonho de um mundo melhor, de um mundo onde houvesse comida, diversão e arte por toda parte e não só no nosso quadrado de classe média urbana paulistana. Além disso, éramos vários, e nossas palavras circulavam unidas em mesas de bares e em rodas de samba, em alto e bom som, sem medo de incomodar.
Depois, depois o que aconteceu? Depois doses de uma nova realidade foram aos poucos sendo colocadas nos nossos copos. O som ficou mais abafado e a vida, menos furiosa e mais calada.
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Você falou de novo no som. É invasivo, não é? É, eu sempre digo que é. Então. Então era muita vida, é isso? Sim, às vezes, dependendo do momento, dependendo da pulsão de morte, a vida pode ser muito invasiva.
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Seja o que for, ao invés de panelas, penso que o coro das janelas deveria ganhar uma nova versão.É muito som pra vocês. Sempre foi.
Para E.F.N., in memoriam.
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