terça-feira, 16 de agosto de 2022

Inferno

Ultimamente tenho pensado muito nos meus mortos. Nos homens, mas principalmente nas mulheres, três e três.

Eu não gosto de triangular, costumo dizer. Terceiros entram como farpas que esgarçam toda a minha fantasia. O que não significa, contudo, que o três nunca tenha me apaziguado, pois só me curei de uma insônia aguda quando Amora se juntou a nós, a mim e ao Sig. Ela, que trouxe consigo a lembrança de traços de caráter da minha avó, desde que chegou, dobrou-se apenas para se encaixar num dos lados do triângulo que a sua presença criou.

Também minha avó, minha mãe e eu somos três partes de uma história, cada uma de nós contada num capítulo que faz referência aos outros. Num dos trechos do seu capítulo, minha avó costumava dizer, Camila namorou a bíblia inteira, referindo-se aos nomes dos meus namorados e ex-marido. Ela falava e ria, divertindo-se com a brincadeira, e eu ria com ela, com a perspicácia dela.

Sempre altiva, minha avó nunca se dobrou a nada nem a ninguém, exceto às circunstâncias, ou melhor, ao que eu gosto de chamar de as vicissitudes da vida. De uma mulher nascida no início do último século nunca a ouvi dizer que eu deveria me casar, ter filhos e viver para fazer um marido feliz. Nunca. Pelo contrário, minha avó sempre enxergou a pusilanimidade do meu pai, seu genro, e tentou de todas as formas falar sobre as dores da mulher que ela também era para além de ser a minha avó ou a mãe da minha mãe, as dores que todas nós, mulheres, de uma forma ou de outra, temos em comum. Desafortunadamente, contudo, eu, que ainda não era uma mulher, nunca a escutei, alegando não querer saber das suas desventuras femininas pois que o meu amor pelo meu avô não me permitia ouvi-la falar mal dele. Desentendi a minha avó enquanto ela vivia e agora tento entendê-la a todo custo.

A voz dela tem aparecido na minha cabeça quando eu menos espero, como quando a ouvi dizer claramente o que deveria ser dito a qualquer homem que, frequentando a minha vida, a minha casa, o meu corpo, os meus pensamentos, os meus espaços, o meu tempo venha a declarar, como quem lança um míssel que ele próprio tenha criado e do qual ele desavergonhadamente se orgulha, que sim, que sempre saiu com todo mundo, que sim, que quer comer todo mundo, que não, que não garante que isso não irá acontecer. Um homem que não se garante. Eu a ouço então dizer, a minha avó, ele que vá à merda. Com quem ele pensa que está lidando? (Recordemos aqui a altivez.) Estou certa de que seriam essas as palavras dela. Mas como posso ter tanta certeza?

Posso pois cresci ao lado dela, vendo-a mandar à merda, de um jeito ou de outro, todo e qualquer homem que a atormentasse com seus modos e caprichos desmedidos, fossem eles quem fossem, médicos, advogados ou políticos locais, amigos da família, sendo o seu filho a única exceção.

Num momento em que a monogamia está em baixa, mesmo ouvindo a minha avó, eu, uma monogâmica serial, chego a me colocar em cheque. Será que sou tão careta assim? Será que eu sou o problema?

Amigas me perguntam ou me aconselham, por que você não segue assim, como ele está propondo, por enquanto? Vai que ele muda. Vai que ele isso, vai que ele aquilo. Agora é assim. Fico atônita. Agora é assim? Assim como? Assim débil, ora morno, ora frio, continuamente medíocre?

Por que eu deveria ceder ao desejo de um outro, mesmo sabendo que isso faria todo o tesão da minha fantasia desabar? Por que, sabendo que o meu gozo corre por outra via, eu me submeteria ao cálculo antipulsional masculino, feito por homens que passam a vida a criticar o capitalismo e o machismo mas que, na prática, vivem contando os juros e não aceitam as falhas dos seus investimentos, que se postam como objetos preciosos no mercado de um gozo supostamente infinito e que não param de se perguntar, quantas serão as mulheres que irão me querer? Quem dará mais para levar, junto com o meu objeto mais valioso, toda a minha insegurança e a minha carência desenfreada?

Quem investe calcula e o amor, penso eu, não tem nada a ver com cálculo. O amor é o avesso do cálculo, é o único lado da moeda que pode nos salvar de nós mesmos, do desmedido eu. "'O inferno são os outros! Berra Sarte.' Acredito ouvir a voz alquebrada do velho Freud responder-lhe desde o além: 'Não, o inferno é o eu! Só o outro salva: é o amor'", escreve Nina Saroldi no prefácio de Psicologia das massas e análise do eu: multidão e solidão, de Ricardo Goldenberg.

Ah, mas e o desejo? E o louco desejo de poder ter tudo, a histeria coletiva de uma ou de outra moda, de um ou de outro modo? Neste ponto você, queridx leitxr, que está aí me fazendo companhia, poderá dizer, não sem razão, que o desejo, afinal de contas, tem que ser respeitado! Se uma pessoa quer comer tudo mundo, ótimo, qual é o problema? Ao que eu terei que perguntar, mas será que todo desejo deve ser estritamente respeitado? Alguém que tenha o desejo de sair por aí atirando nas pessoas deve ter o seu desejo necessariamente respeitado? Há limites para o desejo? E se houver, quais são? E o desejo do outro? E o desamparo? Quem, afinal de contas, quer ser a criança que fica do lado de fora da porta do quarto dos pais enquanto eles transam lá dentro? Você?

E já que estou aqui a tratar do inferno dos meus relacionamentos, a propósito do que recentemente escreveu Manuela Cantuária em sua coluna no jornal Folha de São Paulo, sexo oral, queridos, por melhor que seja feito, não garante o lugar de homem algum no céu e nem é selo de autenticidade antimisoginia. Tenho poucas certezas e muitas perguntas, mas de uma coisa eu sei: enquanto vocês seguirem hipnotizados pelos seus próprios pênis, o inferno será de todos nós.

Nenhum comentário:

Postar um comentário