sábado, 16 de julho de 2022

Um ser que a si mesmo se nina

"O que é mesmo que isso me ensina?
Um ser que a si mesmo se nina
Um quase lamento
Já é nota de tom
E tem cor de jasmim

Eu nunca tinha visto nada assim"

Caetano Veloso em Autoacalanto



É possível que seja somente a minha imaginação, mas me lembro de ter lido, embalada pelos sacolejos de um trem desses mais ordinários que fazem, ou pelo menos faziam, o trajeto entre Guimarães e Braga, em La loca de la casa, Rosa Montero dizer que se ela tivesse que escolher entre ler ou escrever, e apenas entre uma dessas coisas, ela escolheria ler. Embora eu tenha acabado de cometer um ato falho ao ver surgir na tela escrever ao invés de ler, eu diria que escolheria como Rosa.

Também me recordo de ter escutado, sentada à beira-mar, Nora Ephron falar sobre o enlevo que lhe era causado pelos livros. À medida que a sua voz me percorria, eu tinha vontade de ressuscitar a Nora e de abraçá-la ali mesmo, na borda do litoral, ela que, com o seu extravasamento, conversava de além-túmulo comigo. O enlevo de Nora era o meu, e não só o de ler. Nora Ephron transformava em riso, em beleza e às vezes em lágrimas as coisas mais prosaicas. Ela escrevia sobre a vida dela e, ao fazê-lo, sobre a de todos nós. Nora e outros como ela que ousaram e seguem ousando jogar no liquidificador da tal da autoficção a sua percepção e a sua autopercepção entregam um caldo para o leitor que acredita que, ao engoli-lo, está engolindo a mais pura verdade sobre a vida daquele autor, o que, apesar de não ser uma trapaça, não deixa de ser uma enganação, um jogo de espelhos. Afinal, a autoficção é de quem?

Passei anos escrevendo sem saber o porquê e mal sabendo sobre o quê. Amigas, médico, terapeuta, ex-namorado, ex-marido e afins me diziam as mais diversas coisas a respeito. Você usa vírgulas demais, você deve escrever sobre isso ou sobre aquilo, você deveria escrever só sobre uma coisa, você não escreve tão bem quanto o fulano que eu tanto admiro, qual é o objetivo disso, isso é para você se exibir, nossa, você escreve, então eu também vou escrever. Vivi em intervalos, entre a escrita e a vergonha de escrever, achando que eu não tinha nada a dizer a ninguém, especialmente a mim mesma.

Só que escrever, bom, escrever é uma outra história, que não tem nada a ver com aquilo que é dito por quem não sabe o que é estar na pele de alguém cuja carne é feita de palavras. É um ato que resume um acontecimento, que pode ser simplesmente o de existir ou o de existir para ler os livros que estão no mundo. Escrever é o extravasamento de algo muito singular e precioso e confesso guardar um eterno leve rancor de todas as criaturas que desprezaram a minha escrita. Perdoar, a propósito, nunca foi o meu forte.

Escrever é algo tão pessoal e livre que fico no mínimo intrigada quando vejo tantos cursos de escrita sendo oferecidos por aí. Alguém consegue mesmo imaginar, por exemplo, Clarice Lispector sendo ensinada a escrever? Escrever não se ensina nem se aprende, é apenas algo que acontece.

Outra coisa que me intriga sobremaneira são os homens, os homens que, ao depararem com uma mulher que escreve, dizem, sem o menor constrangimento e sem pensarem duas vezes, eu sou um escritor. A criatura escreveu alguns e-mails, eventualmente dois textos e algumas redações escolares ao longo de quase cinquenta anos de vida e num estalar de língua se autointitula escritor. Enquanto isso, escritoras brilhantes como Elena Ferrante declaram ter passado décadas escrevendo sem nunca terem mostrado nada a ninguém. Por que é que nós, mulheres, invariavelmente achamos que não temos nada a dizer ou que aquilo que nós dizemos não tem o mesmo valor que aquilo que os homens dizem, com a fala ou com a escrita?

Os anos que eu passei pensando que eu nada tinha a dizer só passaram realmente quando encontrei uma outra mulher que insistiu, ao longo de alguns outros anos, que eu tinha a minha escrita. Ela dizia e eu desconversava. Ela repetia e eu fingia que não elaborava. Mas eu sabia, e ela também. Se aprender a ler foi o grande acontecimento da minha vida, escrever é o ato principal. É o que me mantém unida a mim mesma e, simultaneamente, ao mundo. Eu falo o tempo todo com o meu bloco mágico mental e escrevo a minha vida enquanto ela acontece, no momento mesmo em que ouço um latido ou um gemido. Olho um corpo nu e penso na cena a ser escrita enquanto ela se escreve. Ouço um amigo dizer que ouviu do seu filho que a vida é um raio de luz que rasga o meu peito, que faz uma fenda no meu peito, e digo que preciso escrevê-la, repetindo, mais uma vez, que viver é se rasgar e, no meu caso, costurar-se depois em palavras. Tanto faz o corte, o que importa é saber que existe uma forma de curá-lo.

Ouço tantas vezes o Caetano, muitas e repetidas vezes, ao longo da vida, ao longo de um dia inteiro, só para ver a beleza cinza da feia fumaça que sobe apagando as estrelas ou a doçura da franja da encosta cor de laranja e do capim rosa-chá atravessarem aquela minha curva aberta, aquela coisa certa que não dá pra entender e que é tão real quanto a fenda que já vem rasgada no peito de quem nasce. O Caetano escreve imagens com palavras e me faz dizer à mulher que repete em mim a coragem de escrever que quando escuto um ser que a si mesmo se nina eu penso na minha escrita.

Uma amiga certa vez me perguntou, estupefata, o porquê de eu ter parado com as minhas práticas de ioga e com a prática de qualquer meditação que seja. Na época eu dei respostas que hoje considero tortas. O papo reto é que, para mim, é perda de tempo. Hoje, eu não suportaria passar segundos, minutos, horas ouvindo a minha respiração enquanto há tantos livros por ler ou tantas coisas para escrever. Quando leio e quando escrevo eu pulso, eu viro página, eu viro letra e encontro substância para tentar virar gente.

Freud, um escritor magnífico que por sua vez amava os escritores e que os citava a todo momento, diz, a uma certa altura de Psicologia das massas e análise do eu, que aquele que escreveu o mito e o contou aos outros se libertou na sua imaginação. Nessa levada eu começo a pensar, olhando para as mãos da mulher que escreve, que, se o mesmo Freud nos mostrou que nós não somos senhores em nossa própria morada, a salvação da escritora talvez seja ser a inventora da sua própria loucura.

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