terça-feira, 28 de junho de 2022

Aliens

"Donadio Qual é a coisa mais importante que a senhora gostaria que ficasse em seus leitores após terem lido suas obras?
Ferrante Que, mesmo sob a tentação contínua de baixar a guarda - por amor, por cansaço, por simpatia ou gentileza -, nós, mulheres, não devemos fazê-lo. Podemos perder em um instante tudo o que conquistamos."

Elena Ferrante em Frantumaglia



Penso em ter um filho e imagino alien, o oitavo passageiro, crescendo dentro de mim. Como eu suportaria esperar, por meses a fio, para ver quem seria o estranho que, depois de me habitar por tanto tempo, romperia a minha carne?

Penso no leite inflamando a pele dos meus seios e num pequeno tirano me ordenhando ao seu bel-prazer e sinto o horror que só as coisas muito reais provocam. Certa vez um homem me disse que pediu a uma colega de trabalho que estava amamentando que lhe desse um copo do leite que era destinado ao bebê. Ele tomou, mas não gostou. Será que os homens, mesmo aqueles que cresceram até alcançar quase dois metros de altura, são pequenos édipos para sempre? 

Ouço desse mesmo homem que se relacionar comigo era como estar com um dos seus amigos. Eu falava gírias, dizia o que pensava. Era seca, como um corte. Ele parecia permanentemente confuso, talvez e principalmente pelo sexo, onde, não havendo meias-palavras, aos olhos dele, eu curiosamente me tornava uma mulher. Quem foi que inventou a mulher? 

Ouço de uma colega de trabalho que uma mulher que não tem filhos não é uma mulher completa. E o que é uma mulher completa? O que é uma mulher? O que mais além de um filho pode ser um falo para uma mulher? O que é falo? De quem é?

Ouço de uma amiga que seja qual for a sua escolha entre dois homens, ela estará em boas mãos. A cada conversa que nós temos penso mais e mais em Emma Bovary e me pergunto, em nome de que ela precisa estar nas mãos de um homem?

Leio O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, e de todas as suas páginas a frase que me marca com ferro em brasa é, a mulher é escrava da espécie. Sendo escrava, dá para ser livre?

Leio Maternidade, de Sheila Heti, e deparo com a ideia de que, se a proibição do aborto é uma forma de controle dos corpos das mulheres pelos homens, a gravidez é uma forma de controle dos corpos das mulheres pelas mulheres. Lembro então das vezes nas quais ouvi de uma amiga, mãe de dois filhos, num tom maldisfarçado, que vida miserável era a minha, que não tenho filhos. Uma mulher sem filhos, liberdade demais para uma escrava?

Vejo uma filha trepar, escalar e grudar numa mãe que tenta manter uma conversa com outras pessoas. A mesma cena se repete entre um pai e um filho. Fico nauseada. Penso, como alguém pode viver assim, expropriado do próprio corpo?

Vejo Cenas de um Casamento, a nova versão produzida pela HBO, e Please Like Me, e em ambas há personagens que, após engravidarem, decidem abortar. Para tanto, simplesmente são orientadas pelo sistema de saúde com relação aos procedimentos, ou seja, tomar os remédios que lhes são fornecidos. E fim de papo. Penso na eterna faca que vive sobre o meu pescoço, que é o risco de engravidar e de ter que me haver com isso num país que não me dá o direito de exercer sobre o meu corpo as minhas próprias escolhas. Eu, uma mulher branca e privilegiada, vivo assim. Como vivem as mulheres que não estão nessas mesmas condições? O que acontece quando elas engravidam sem desejar? A quem pertencem os nossos corpos?
 
Vejo Intimidade, série da Netflix, e penso que talvez os dois maiores tabus da humanidade não sejam o sexo e o dinheiro e sim a sexualidade da mulher e o dinheiro. Misoginia e machismo, apesar dos tons e das cores dos nossos tempos, que pintam a sexualidade feminina como algo muito mais livre, seguem firmes e fortes, sendo denunciados pela arte e escancarados pela vida pública e pelas tragédias da vida privada. Embrulhados como um presente de grego nos lençóis, revelam-se sob a forma de impotência, ejaculação precoce e inibições que estão ali dizendo aos homens que eles tampouco são completos. Isso quando não se transformam em violência física e psíquica ou em feminicídio. O que vocês homens têm entre as pernas não é falo, é só um pênis.

Vejo, hoje, que a minha colega de trabalho não fazia a menor ideia do que é uma mulher ou, pelo menos, não da mulher que ela era ou da mulher que eu era. Eu também não fazia. Completude é só mais uma das ilusões que nós criamos para tentar fugir desse monstro sem nome e sem rosto ao qual damos o nome genérico de angústia. Dele todo o mundo quer mesmo escapar. Mas daí a afirmar que uma mulher precisa ser mãe para lidar com a própria falta existe uma distância que só poderia ser medida em anos-luz. E por uma mulher. Afinal, quem melhor do que cada uma de nós para nos inventarmos?


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