segunda-feira, 30 de maio de 2022

E a nave vai

Sentada à mesa de um bar agito a mão na qual seguro um copo de cerveja e digo que daria um dedo para ter de volta o mundo que existia antes da pandemia. No dia seguinte, sentada numa sala de cinema, penso que daria dois dedos para ter de volta o mundo dos objetos ao qual Aksel, o personagem na casa dos 40 anos de A Pior Pessoa do Mundo, faz referência. Lembro então que também já cheguei a pensar, olhando para a água que escorria do chuveiro, que daria um braço para poder me despedir de uma pessoa que eu amava muito e que morreu de repente. O porquê de viver pensando em me fragmentar eu não sei, mas para me conter escrevo com as palavras que vão sendo continuamente projetadas nas paredes do meu crânio, como se fosse eu também uma tela de cinema.

Tentando curar alguma coisa, escrevo uma mensagem na qual se lê que de ressaca a coração partido o cinema sempre foi o meu lugar de cura. Deborah Colker coloca dois homens, uma grande atadura e Leonard Cohen juntos num palco e tenta curar a dor que vem da doença incurável do seu neto Theo. O jeito que ela tem de tentar se curar me faz chorar.

Leonard Cohen me arremessa no corpo das lembranças de uma grande paixão, vivida na mesma intensidade dos festivais de rock e da pulsação inerente às ruas de cidades como Paris, Londres e Berlim, uma paixão que tirou da cartola o mapa do mundo e o colocou nas minhas mãos, não sem antes me mostrar os truques que eu precisava saber para me orientar sozinha nele. Eu sempre penso na raridade desse encontro.

Num outro planeta, mais concreto e ordinário, um homem pelo qual eu estava me apaixonando me diz, nós temos tempo de sobra para ver se vale a pena viver esse amor, e enquanto ele dizia eu escrevia, pensando, que porra é essa, do que é que ele está falando, quem tem tempo sobrando para esperar viver qualquer coisa, quem dirá um amor?

Os créditos de Dor e Glória sobem e eu saio do cinema soluçando e pensando que se Pedro Almodóvar tivesse feito só esse filme ele já teria sido um dos diretores mais fantásticos de todos os tempos. Os créditos de Tre Piani sobem e eu penso, contendo os soluços, em Dor e Glória. Os dois filmes falam sobre o tempo e sobre o envelhecimento, mas isso eu só percebi depois.

Uma personagem de Tre Piani pergunta ao marido morto, enquanto deixa uma mensagem na secretária eletrônica, por que, ao longo da vida, eles não se permitiram mais. Voltando do cinema ouço no carro aquela música que diz que hoje o tempo voa, amor, escorre pelas mãos, mesmo sem se sentir, e que não há tempo que volte, e novamente eu penso, quem é que tem tempo de sobra?

Julie, a protagonista na casa dos trinta anos de A Pior Pessoa do Mundo, tem muitas dúvidas e um pai indiferente. Eu tenho muitas dúvidas mas na casa dos quarenta descobri que escolher também é ser livre. Meu pai continua indiferente.

Com música e dança deslocadas na rua, Nanni Moretti suspende o tempo em umas das cenas finais de Tre Piani e o atravessa com a loucura da personagem que não suportou ser mãe. Eu imediatamente penso em Fellini e me vejo sentada diante de Amarcord e de E la Nave Va. Subi a montanha mágica de Thomas Mann, folheei Mário Schenberg e me encantei com Bergson, mas até agora não descobri o que é o tempo.

Eu digo que não choro nunca mas sempre me pego chorando. Eu digo que não me rasgo mais e logo em seguida passo uma noite e um dia inteiros me rasgando. No carro a caminho de casa ouço a Tati Bernardi dizer que a potência está justamente em se rasgar. Eu entendo, com a carne, e penso que é melhor viver de peito aberto, ainda que rasgado, do que morrendo afogada.

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