terça-feira, 18 de outubro de 2022

É impossível ser feliz sozinho*

Subindo e descendo, como uma onda, é assim que anda o meu humor.

Eu não quero saber, digo, baixinho, a uma amiga; por favor, não me mostre nada, não me fale nada agora. Só vou saber quando acabar.

O sonho põe fim ao meu sono e, já de olhos abertos, procuro nas dobras da cortina do quarto uma resposta para o que está acontecendo. Percebo então que no palpável da vida o dia ainda está por vir e que no sonho, apesar da contagem ter sido iniciada, o dia é o da véspera, e não o do acontecimento. Considerando que na vida real os sonhos de angústia, os famosos pesadelos, costumam interromper o sono, por que será que ainda tem tanta gente dormindo? Quanto tempo dura um pesadelo?

Saio arrastada da cama e tento me animar com o meu balde de café matinal, uvas verdes sem sementes cobertas por uma fina camada de mel e uma fatia de pão (sem glúten, por puro capricho) acompanhada preferencialmente de geleia de laranja e de uma fatia de queijo branco. Todo dia faço tudo quase sempre igual ao acordar. O mesmo cardápio e um romance, aquele que eu estiver lendo no momento, e necessariamente há algum. Impossível viver sem literatura e eu fico levemente horrorizada quando alguém me diz que o faz, o que ocorre com a maioria das pessoas que conheço. Aliás, se algum dia se apresentar diante de mim uma criatura que precise igualmente do silêncio e do sabor do café da manhã para, com a ajuda de um livro, fazer a transição do mundo do sono para o mundo concreto, chatinho e funcional que fica lá fora de casa, bom, eu caso com ela e não a abandono nunca mais, de maneira que a minha definição de amor, a minha resposta para a pergunta, o que é o amor, talvez seja essa, amor é quando duas pessoas podem ler seus respectivos livros em silêncio e sem serem interrompidas a todo momento uma pela outra com alguma conversinha fiada durante o café da manhã. Parece simples, mas não tem sido.

Vou para o mundo e digo, para quem quiser ouvir, que não consigo conversar. Uma amiga me conta que anda desejando luz para todo mundo. Faz sentido e eu acho lindo mas a única luz que atualmente sai de mim é a do meu olhar quando fulmino, com os olhos, casas e carros, a exemplo da caminhonete enorme e ostensivamente branca, como um traje de um integrante da Ku Klux Klan, parada no estacionamento da padaria. Ou seja, o único lugar seguro para mim, atualmente, é dentro de casa, e com as cortinas fechadas.

Então eu me tranco e tento ser feliz pensando nas férias que se aproximam. Para começar, miro na perspectiva de passar horas lendo romances em aviões e trens. Sei lá o que me dá (eu poderia aqui até me aventurar pelo o que Freud diz no segundo dos três ensaios sobre a teoria da sexualidade acerca da ligação entre viagem de trem e sexualidade, mas vou deixar que você, leitxr mais curiosx, leia Freud e faça a sua própria viagem, de trem ou não), só sei que ler nessas situações me torna uma mulher plena. De maneira que, no meu caso, teoricamente basta um livro e um bilhete de trem para colocar um fim, ainda que temporário, nas minhas angústias existenciais. Ou pelo menos antes era assim. E agora, como será?

Volto a descer para a realidade cotidiana e ouço de um amigo que determinadas pautas são difíceis de explicar. Difíceis como? Quais pautas? As humanitárias? Fico então pensando na inversão da lógica ou na lógica da inversão e concluo que milhões, talvez bilhões de seres humanos que habitam o planeta simplesmente não saibam o que é ser humano. Do contrário, por que questões humanitárias teriam que ser explicadas? Mas será que é mesmo disso que se trata? Qual, afinal, é a grande questão humana que reside aí? É uma só? E a minha, qual é? Por que a música do Tom Jobim não para de tocar na minha cabeça?

Subo de novo quando descubro que, ao contrário do que parecia, ou melhor, do que não aparecia nas minhas pesquisas, há um guia Lonely Planet atual, com as revisões que se fazem necessárias ao longo de uma pandemia, disponível para compra. Quando o tão desejado objeto chega até mim, abro a caixa de papelão que o embala e, ao retirar o fino plástico que recobre o exemplar, fico inebriada com o cheiro do volume e com a minha própria loucura. Na era do tudo virtual, quem, em sã consciência, é capaz de ficar radiante com a ideia de transportar, para cima e para baixo, durante dias, um guia de viagem relativamente robusto, já que com mais de mil páginas, na própria mochila? Fecho as cortinas e, feliz por algumas horas, viajo nas páginas finas e deslizantes até ser carregada pelo sono para um outro lugar, aquele onde fica o umbigo do sonho, cuja localização exata ninguém sabe informar.

Em meio às flutuações, uma amiga, que parecia estar num lugar tão inacessível quanto o do umbigo de um sonho quase esquecido, reaparece e me conta - a voz dela ao telefone me fazendo sentir como se eu tivesse de novo catorze anos e estivesse ouvindo Blister in the Sun pela primeira vez nos fones de ouvido de um walkman - que por lá a maré também não está para peixe e que, para tentar explicar determinadas questões, ela costuma dizer que direitos não são como fatias de bolo que, quando distribuídas, acabam. Assim que desligamos, vou da felicidade à tristeza em poucos segundos. Fico feliz simplesmente por ela existir, por ser minha amiga e por todas as coisas que um dia vivemos juntas, e absolutamente melancólica por ter perdido tantos anos de outras coisas que ela viveu, sem mim, sem que eu soubesse. Sabe aquele livro, lindo, do Kasuo Ishiguro, Não me abandone jamais?

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Ainda que a minha amiga não tivesse razão ou, usando a lógica da inversão ou a inversão da lógica, tanto faz, a pergunta é, ainda que direitos fossem como fatias de bolo, será que daria mesmo para ser feliz comendo o bolo inteiro, sempre, sozinho?


* Verso de Wave, de Antonio Carlos Jobim, Thalma Alyagon Roz e Roee Ben Sira.

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