quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

E daí se eu tenho uma vagina?

Um desconhecido me diz, num abrupto giro de pescoço seguido de um leve empinar de queixo, a propósito de um evento vivido por mim, que naquela situação havia faltado um homem. Enquanto regurgitava ali, no meio do corredor, a falta que muito provavelmente não me dizia respeito, esse homem, cuja inquietação vinha sendo possível alcançar desde o momento em que havíamos começado a nos acomodar nos insólitos assentos de um avião, parecia sincera e surpreendentemente inconsciente a respeito do fato de que ser homem não o havia livrado das penas por ele experimentadas no mesmo contexto temporal e espacial pertencente ao meu relato, conforme ele mesmo, aliás, havia confessado minutos antes.


Desembarcamos de um trem e eu vejo a minha mãe olhando para as pessoas que vão e vêm pelas plataformas e ao mesmo tempo para o nada, francamente desnorteada, como se estivesse vendo o impossível se descortinar sob os seus olhos. O que foi, pergunto. Ela então balbucia que uma amiga acabara de lhe dizer, por WhatsApp, que mulheres viajando sozinhas dão a impressão de estarem à caça. De quê? Pergunto, segurando a minha língua e o braço da minha mãe e anotando a expressão no meu bloquinho mental.


Também pelo WhatsApp, uma amiga me pergunta, logo no início da única conversa que temos ao longo dos dias em que estou viajando, se já conheci alguém. Desconverso, utilizando uma técnica que alguns classificariam como manipuladora e sutilmente cruel e que, apesar da aparente simplicidade, levou anos para ser aprimorada. Nesse caso, para além do bom desempenho da minha estratégia, o que saltou aos meus olhos foi o fato de que ainda que eu estivesse chafurdando em beleza, arte, História, garrafas de Chianti, taças de Spritz, gelatos, massas, cremes e doces indescritivelmente gostosos, o foco da curiosidade alheia seguia voltado para a questão, você já conheceu alguém?



A pergunta então me veio assim, piscando, como um letreiro de néon já meio esculhambado, desses que não se decidem a se manterem integralmente acesos e que a qualquer momento podem se apagar: e daí se eu tenho uma vagina?

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Annie Ernaux, que ganhou o prêmio Nobel de literatura recentemente, escreveu um livro chamado O acontecimento sobre o aborto que ela fez quando era uma jovem estudante universitária e quando abortar ainda era um ato tipificado como crime na França. Pois bem, logo no início do livro, Ernaux escreve, ao falar sobre os eventos que a fizeram engravidar, ou seja, sobre as suas transas com um outro estudante: "no amor e no gozo, não me sentia um corpo intrinsecamente diferente do corpo dos homens." Essa foi, não por acaso, a frase do livro que mais me marcou. Assim, fiquei surpresa quando, ao ouvir uma análise do romance feita por uma psicanalista, essa mesma frase é abordada com um sentido totalmente diferente daquele que a mim me tocou. Para essa analista, o acontecimento ao qual se refere o livro não é o aborto em si mas a descoberta, inconsciente, do corpo feminino, de um corpo de fêmea, de um corpo que engravida, interpretação da qual eu não poderia discordar mais cabalmente. O que, afinal, é um corpo feminino? É aquele que dá à luz? Mas e os corpos femininos que não podem ou que não querem, de uma vez por todas, dar à luz a alguém, ou não dessa forma? E aqueles que querem simplesmente se iluminar? O que é ser uma mulher dentro de um corpo? Um corpo de mulher pode simplesmente desejar um outro corpo, o de um homem, por exemplo, só pelo desejo puro e simples, como alguém que olha com avidez para um pedaço de carne suculenta visto numa bandeja que um garçom carrega por entre as mesas de um restaurante? O que são e a quem pertencem o masculino e o feminino? Dito isso, penso que o livro é todo, sim, sobre um aborto e sobre um desejo, ambos narrados com seca e dilacerante coragem. É necessária tanta coragem para escrever, e também corpo e solidão.

Solidão da qual eu não desejo, em hipótese alguma, abrir mão, e que me faz sair correndo até a farmácia numa noite de domingo para comprar um anticoncepcional, enquanto ouço a voz da minha nova ginecologista dizendo, só se você for muito cagada pra ter um câncer com esse histórico. Cagada mesmo seria engravidar, eu replico, falando sozinha, e pensando que finalmente, depois de uma vida inteira, encontrei uma ginecologista que parece ser zero careta. Pois que, meu Deus, quem nunca se intimidou com um comentário feito por uma ou por um ginecologista ou não teve vontade de sair correndo do consultório após receber um olhar de reprovação ou de suspeita, mas não sem antes perguntar, afinal, qual é a sua, você está aqui para me tratar ou para me julgar?

Billie Eilish, que vive exposta ao julgamento de todo um planeta, disse, numa entrevista recente, que gosta de se sentir mais masculina do que feminina e que isso foi algo difícil para ela por um tempo. Achei interessante e penso que, ainda que ela seja muito jovem, essa é uma questão que provavelmente a acompanhará pela vida afora, ou pelo menos é assim que foi comigo, que passei a vida oscilando entre mostrar ou não o meu corpo em roupas mais ou menos largas (sigo preferindo as largas), entre ser mais feminina ou mais masculina, o que, confesso, nunca me impediu de me comprazer ao ouvir, depois de ter sido vista nua por um homem, que tivesse a primeira noite sido ou não a única, ele se lembraria do meu corpo pelos dez anos seguintes.

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Naquela noite eu apertei o rec sem perceber, sem música pra gravar, só com o som ao redor. Mas trilha sonora importa, como você bem sabe, e no fim resumi o nosso álbum a um EP, uma playlist irretocável que em cinco músicas entrega, com perfeição, o conceito da coisa toda. Nunca te mostrei e nunca vou te mostrar mas já a ouvi à exaustão andando pelo caminho de terra e árvores do qual se vê a sua casa, que agora parece outra. Será que as casas também mudam? Naquela noite sem som eu só ouvia a sua voz e acho que foi isso o que me fez ficar ali, é com a voz que os hipnotizadores trabalham, não é, ficar sem cerimônia, como se a luz do dia que entrava pela janela do seu quarto fosse minha, ainda que me fosse completamente estranha. Será que a abstração que se vê da rua, à meia-luz, pairando numa das paredes do seu quarto, já existia? Havia mesmo todo aquele branco nela? Naquela noite tudo parecia tão escuro. Agora, há claros que eu não reconheço, da mesma forma que não reconheço as manhãs, cuja textura, misturada à da sua pele, tem o tom de Vapor Barato, versão Gal, que vai ser pra sempre fatal, assim como o são as cenas finais de Terra Estrangeira, da Daniela Thomas e do Walter Salles, quando embaladas pela música do Macalé. Chorei pra caralho nesse final, mas acho que nem foi de tanta tristeza. Foi outra coisa. Pode ter sido até de saudade. É por isso que quando você me diz que eu pareço te esnobar eu fico sem saber o que dizer e quase te mando, não a playlist que você nunca vai ouvir, mas a Gal dizendo aquela coisa, de novo, tão fatal, que muitos não sabem como dizer e outros não sabem como escutar, a Gal te chamando de meu bem e falando da sua estupidez, a que não te deixa ver que eu te amo. Ao invés disso, ouço a Beth Gibbons cantando It Could Be Sweet e troco, na minha cabeça, o tempo verbal, porque é isso só o que eu sei fazer, ficar pensando no tempo e nas formas das palavras. Cozinhar, você viu, eu não consigo. Hoje joguei fora uma panela inteira que não deu certo e, nos últimos dias, rasguei folhas e folhas cobertas por textos imprestáveis. Escrever qualquer coisa, escrever poesia, isso é fácil, ouvi de um professor, um acadêmico, na noite passada. Fácil pra quem? Você por um acaso já foi Hilda Hilst algum dia, já enlouqueceu de desejo de colocar o mundo numa folha de papel, sabe o que é estar dirigindo, trabalhando, comendo, andando, falando com alguém enquanto as frases se descortinam na sua frente sem que você possa efetivamente escrevê-las? Você sabe o que é o inferno de viver nessa urgência?

A Marguerite Duras, por exemplo, sabia, e por isso ela escreveu tanto, e também amou. A urgência da escrita não é muito diferente da do sexo. A diferença é que sexo pode virar texto, mas a escrita, essa dita "fácil" por um acadêmico desavisado, não há como escrevê-la.

É só o fluxo do rio, e mais nada.

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