sábado, 4 de fevereiro de 2023

Jane Jones

Manhã de quinta-feira. Ela salta da cama com uma urgência que, mais cedo naquele mesmo dia, não havia gritado com tanta força. Mal se equilibrando sobre os próprios pés, atravessa a porta do banheiro como se do ato de alcançar o chuveiro dependesse a sua vida. A cabeça dói e o corpo implora para que ela despeje imediatamente o vinho verde ingerido na noite anterior no buraco mais próximo, preferencialmente, para não despertar a fúria da sua psicose de limpeza, no vaso sanitário. Detesto vomitar, ela pensa, odeio vomitar, vomitar é a morte, não vou vomitar, decide, e desvia os olhos da privada para a pia, onde outra concavidade a atrai como um ímã e onde ela descobre, jazendo sobre a pedra plana que circunda o pedaço de louça em formato de meio ovo de Páscoa, um objeto cujas cerdas azul bic contrastam de forma quase obscena com os tons discretos que o rodeiam. Como um raio, um pensamento a atravessa e ela volta a sua atenção para o box, em cujo interior, uma vez aberta a torneira, a água morna que desce pelo seu corpo suaviza o peso da palavra.

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Essa palavra vinha caindo sobre mim quase que diariamente, como uma chuva forte de verão, dessas que chegam sem muito aviso e levam tudo o que encontram pela frente. Confesso que falei como quem diz uma coisa, mas logo percebi que a coisa era outra. Confissão inútil, eu sei, pois você já sabia. Os seus silêncios, mais quietos que os de costume quando o assunto era esse, sempre indicaram isso. Além do mais, quem é que diz para a analista, vou viver essa história sobretudo para escrevê-la, numa assunção deliberada de uma escolha mórbida, mais condizente - a despeito da presença de todo aquele Eros - com a pulsão de morte do que com a de vida? Nesse ponto, desde o início, eu sempre pensava na personagem que a Natalie Portman representou naquele filme, Closer, e ficava me perguntando, Alice Ayres ou Jane Jones?

Aliás, acho tão bonito isso de numa psicanálise a gente poder se confessar e ainda assim manter o laço com o outro. Ou justamente por isso. Essa relação analista e analisanda, que vai ficando cada vez mais sólida... Claro, falo por mim, pela minha análise, mas como também já experimentei um pouco do outro lado posso dizer que é igualmente bonito quando uma pessoa está ali, entregando algo que é tão dela e com uma confiança tal que essa beleza não raro acaba surgindo acompanhada de ternura. Fico tão emocionada com esse tipo de acontecimento que eventualmente acabo até chorando em séries como Sessão de Terapia. E essa sacada com as palavras, que continuo achando que é mágica mesmo sabendo que não é. O trabalho da analista é das coisas mais lindas que existem, assim como o da escritora. Escrever a vida, como a Annie Ernaux fez em Os anos.

Andei pensando naquela expressão, dar a palavra, e acho que, nos dois sentidos, dar a palavra é um ato de amor. Tanto no sentido de escutar e de acolher a palavra do outro como no sentido de dizer, de dar a sua palavra sobre as coisas, sobre si mesmo. É um ato de amor e de coragem, pois eu tenho a sensação de que atualmente a palavra provoca fuga. Foge-se da palavra como o diabo foge da cruz, e não por acaso, já que a palavra enlaça, envolve, compromete, ou seja, a palavra faz tudo o que, num funcionamento primário, ninguém está interessado em fazer.

Recentemente, numa reunião de condomínio, fiquei estupefata com o mutismo alheio. Mutismo, aliás, que dado o tema colocado em pauta por mim - sim, estou me referindo à situação dos dois cachorros que vivem na casa que faz fundos com a minha -, pode, sem maiores rodeios, ser chamado de covardia. Dar a palavra, pois é, requer coragem. Amar também, e é impossível amar sem palavras.

A palavra covardia invariavelmente me remete ao meu pai. Por que você nunca me chamou de filha, e ele riu. Ele me deu um nome, mas nunca me reconheceu. Sob o mesmo teto que o meu durante os primeiros dezessete anos da minha vida, dormindo no quarto ao lado, fazendo as refeições em silêncio e com a cara amarrada ou batendo, de forma muda, portas e janelas para expressar o ressentimento que a nossa presença, a minha e a da minha mãe, provavelmente lhe causavam, esse homem nunca esteve ao meu lado. O meu pai nunca foi meu pai. Na madrugada da morte do meu tio, ao ter o sono incomodado pelos meus soluços, ele foi até o meu quarto e falou, por que você está chorando? Eu não soube como responder.

Agora que estamos falando nisso, penso que trauma é a palavra que melhor define a minha relação com o meu pai, uma relação em cujo cerne sempre esteve a ausência de palavras. Talvez por isso eu tenha ido buscá-las tão desesperadamente em outros lugares, como nas páginas dos livros ou nos contornos e nos cheiros de outros corpos.

O amor, venho pensando, não é uma construção. O amor é uma invenção, a invenção de uma história criada e contada com palavras. Negar a palavra é o mesmo que negar a possibilidade do acontecimento de uma história, é como se trancar numa gaiola, exatamente como o meu pai fazia e ainda faz consigo mesmo ao viver rodeado por pássaros que ele mantém trancafiados em gaiolas, a exemplo de um carrasco, de um torturador, que observa impassível o sofrimento das suas vítimas. Negar a palavra é dar o tapa que a Alice recebe na cara.

O que fazer com isso, você me pergunta, e eu respondo do divã com o verbo e, de onde quer que eu esteja agora, com o ato.

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