segunda-feira, 13 de março de 2023

Dogville

Fiquei com muita raiva de você, mas agora passou. Nasci com muita raiva, ou melhor, não. Quando criança, vejo nas fotos um olhar de um brilho que só pode ser de alegria. Eu tinha muita alegria e só uma semente de raiva, plantada, provavelmente, pelo alheamento do meu pai. Autista, será, como atualmente tem me parecido a maioria dos homens? No início a raiva era só essa semente que, depois, com o tempo, com os anos, com o deixar de ser aquela criatura falante, simpática, curiosa e cercada por pessoas que me enchiam de cuidados, de amor e de proteção, foi crescendo. Deixei de ser essas e tantas outras coisas mas, curiosa, preciso corrigir, ainda sou. Além de precisar desesperadamente ler, ver, estar em outros lugares, gosto de escutar, embora ultimamente esteja sem paciência para ouvir. Paciência, convenhamos, é um negócio que a vida nos enfia goela abaixo, mas paciência para ouvir é diferente, é de outra ordem, não se adquire à força, por mera resignação. Exige uma série de requisitos, sendo que dormir talvez seja o principal deles. Dormir num contínuo, sem interrupções. Eu não tenho dormido assim, você sabe. Eu mal tenho dormido e, sem dormir, quem é que consegue pensar direito, fazer conexões, inteligir as coisas? Curiosidade, aliás, é outro nome que estou dando para inteligência, porque se eu fosse homem teria dito desde o início que eu era simpática, falante e inteligente. Mas sou mulher e aí você sabe, nós, mulheres, por melhores que sejamos, raramente nos autorizamos a nos colocarmos nos nossos devidos lugares. Diferente dos homens que, para dizerem de si maravilhas (que no mais das vezes não são verdades), não hesitam por um instante sequer. Mulher inteligente não é socialmente bem-vista nem bem-quista. Existem as bolhas, claro, que, nessa qualidade, são lugares de exceção, ilhas no meio do oceano. Um ex-amigo que após muitos anos viajando pelo mundo deu descarga na nossa amizade com uma cantada barata e uma proposta indecente, um dia me disse, você precisa fingir que é mais burrinha para os caras gostarem de você. Noventa e tantos por cento dos meus amigos teriam medo de você. Os amigos, claro. Ela parece uma esponja, a minha mãe disse ao médico, na minha frente, quando eu era muito pequena. Entendi na hora. Talvez isso fosse difícil para ela, lidar com uma criança assim, você falou quando lhe contei. Eu não sei, mas acho que não, acho que era bom para ela ter quem a ouvisse, pois eu a escutava com muita atenção. Diferente do meu pai, que era indiferente a nós duas. Você andou cedo, com um ano não usava mais fraldas, foi o que ela me contou recentemente. Não pode ser. Tem certeza? Sim, tenho. E um pouco depois não queria que ninguém limpasse você. Nessa época, com menos de dois anos, passou na frente da escola com a sua tia e quis ficar. Olhou por baixo do portão e quis ficar. As suas palavras eram bem articuladas, lembra daquela gravação que o seu avô fez, você cantando com perfeição o hino nacional? Lembro, claro, ouvi infinitas vezes essa fita num pequeno gravador de fitas cassete que tinha um microfone e que eu achava genial, assim como achava genial o meu avô. Aliás, até uma certa idade, eu nutria uma grande admiração pelos homens; tinha muitos amigos, gostava da companhia masculina, achava os homens mais livres e mais descolados de certas formalidades. Como eu. Demorei para ser mulher e, desde então, os homens têm me parecido criaturas muito, muito primitivas e até certo ponto, desprezíveis. Todos os dias da minha vida, aliás, lamento não ter feito a escolha certa de objeto, que seria, sem sombra de dúvida, a homossexualidade, pois ser uma mulher heterossexual nos dias de hoje é praticamente uma maldição.

Olhando daqui, o parágrafo acima pode ser considerado um resumo da minha vida, ou seja, há quarenta e quatro anos venho absorvendo do mundo tudo o que posso, venho tentando articular bem as palavras, exortando as pessoas ao meu redor a me deixarem em paz com a minha própria bunda e vendo crescer uma raiva que em determinados dias me faz ter vontade de dizer para muita gente, como no título daquele livro da Ariana Harwicz, morra, amor.

A raiva que fiquei de você foi a mesma que tenho quando alguém não se responsabiliza pela própria merda, ou não é responsabilizado por ela. Coloquei essa vírgula antes do ou e fiquei pensando nas vírgulas da minha ex-amiga, a que queria que eu escrevesse como o noivo, agora possivelmente marido, dela. Nunca mais a vi, nunca mais nos falamos, essa nunca me fez falta. Ao contrário da outra, você sabe quem. Por esta, chorei muito. Raiva tenho mesmo só da das vírgulas. Da outra tenho uma interrogação. Voltando, você não devia ter dito que o problema era meu; ainda que esteja incomodada, não fui eu que caguei aquela merda toda e esse tipo de frase é boa de escrever mas difícil, no começo, de bancar. Porém, como eu já disse, e o divã é minha testemunha, nem sexo nem escrita limpinhos me interessam.

Aliás, nada que tenta parecer o que não é me interessa. Contei para uma colega e amiga que todos os dias me vê e que vem acompanhando a saga da insônia há meses sobre a reação dos presentes na reunião na qual expus a situação causadora não só da minha impossibilidade de dormir como também da minha angústia e do meu desespero, e ela disse, nossa, parece Dogville!, assim, com uma exclamação. Foi aí que descobri que vivo em Dogville e fiquei com mais raiva ainda. Gosto justamente muito do verbo descobrir pois ele vem com esse descortinado de tirar algo que está em cima de outra coisa, e aí, nessa reunião, enquanto um homem dizia que talvez fosse interessante ter alguém de fora para fazer o que tinha que ser feito sem desagradar aos outros, descobri que não daria para conversar. Por mais que eu goste das conversas que eventualmente tenho com crianças, o assunto em questão, a responsabilidade pela merda alheia, envolvendo incapazes, criaturas indefesas, era assunto para ser tratado pelo psiquismo de um adulto.

Criança é assunto sagrado, não é? Ai de quem apontar um limitezinho que seja para uma criança desconhecida. Limite não pode mas deixar a criança ilimitadamente exposta a ruídos enlouquecedores, dia e noite, todos os dias, aí ninguém tem nada a ver com isso, porque dentro das quatro paredes da casa dos outros, o que se passa na casa dos outros, é só do outro. Bateu, espancou, gritou, matou? Fazer o quê? Agora, no ambiente externo, bom, a piscina lá de Dogville, por exemplo, é um lugar que muitas vezes fica repleto de crianças. Eu estava lá numa tarde dessas, estendida sobre a minha canga e quase absorta num livro, quando ouço, Marcelo*, você é chato, gordo e está com sobrepeso. Olho para a piscina por cima do ombro e vejo Marcelo com o rosto contraído, a poucos graus de derreter e de se esvair da sua boia. Simultaneamente, o outro garoto, o que havia proferido aquela espécie de sentença, o olhava com indisfarçável desprezo e sem qualquer nesga aparente de remorso. Na outra extremidade da piscina, pequena - ela é bem pequena, assim como as casas e sobrados, mas alguma coisa existente talvez na água que abastece algumas das unidades faz com que os seus moradores acreditem não pertencer à classe média, bem média, da população -, duas mulheres, provavelmente mães de algumas das crianças, observavam seus filhos saltando e despejando boa parte da água da piscina para fora dela, e eventualmente diziam, num tom lasso, sem a menor convicção, não pulem, vão molhar a moça, olha o livro dela. E aqui tem uma coisa que me intriga e que não é a lassidão em si, mas a lassidão vestida com aquele verniz parental de cor opaca e com roupas em plena tarde muito quente de verão. Mãe não coloca biquíni para olhar o filho na piscina por quê? Os pais, em geral, aparecem por lá em trajes de banho. Será que as mulheres, quando são mães, ficam exaustas demais até para se bronzearem ou para se refrescarem? O que é que nós, mulheres, afinal, estamos fazendo com as nossas vidas?

Chega então o dia oito de março, o dia internacional da mulher, que obviamente só existe em razão do fato de que há séculos nós somos massacradas, silenciadas, oprimidas, espancadas, exploradas menosprezadas, rebaixadas à qualidade de cidadãs de milésima classe, estupradas, mortas etc., etc., e a temperatura medida no termômetro da minha raiva sobe. Sobe, sobe, sobe. Fotografia das mulheres no trabalho. Fotografia, como um animal exótico num zoológico? Mulheres que trabalham, uau, que interessante, vejam essa possibilidade que lhes foi concedida, apesar de serem o que são. Vamos lá, vamos fotografar, vamos registrar esse fato tão digno de nota, esse fato que nos torna homens melhores, que permitem que vocês, mulheres, tenham um trabalho remunerado para além daquele escravo que vocês exercem em casa. Com raiva, recuso-me. Leio então o texto de uma postagem numa rede social escrito no melhor estilo esquerdomacho por um homem que um dia frequentou a minha casa e para o qual, a uma certa altura do campeonato, tive que explicar que o mínimo que ele poderia fazer era tirar o próprio prato da mesa. Claro que aqui se trata, além de machismo, de falta de educação, mas vamos nos ater apenas ao primeiro elemento. Esse mesmo homem insistia em transar sem camisinha, mesmo sabendo que estava saindo com outras mulheres, literalmente cagando, assim, para a saúde alheia, já que o importante, no caso, era única e exclusivamente o prazer dele, sua majestade o rei homem (adorei essa expressão que você usou na nossa última sessão, então a peguei emprestada). Criatura desnorteada que um dia teve a audácia de dizer, deitada na minha cama, que queria mesmo era comer todo mundo e que pediu para voltar alegando que não era qualquer um mas sabendo, de antemão, só por essa frase, ser apenas mais um desclassificado, fato por mim provado e comprovado. 

Como amar os homens, pergunta Vera Iaconelli, na Folha de São Paulo, quando todos são machistas? O texto, sinceramente, poderia ter sido mais incisivo, mas o título é bom. Como, você me pergunta, e me fala das diferenças. Devolvo a pergunta. Como seguir amando um homem que um dia me diz, você fala Inglês, Espanhol e agora vai falar Francês? Como assim, e eu? Um homem quinze anos mais velho que eu, com o qual vivi por cinco anos, e que era um poço de insegurança e de indiferença camuflado de marido exemplar. Vocês eram um casal exemplar, ouvi repetidas vezes após a separação. Exemplar para quem? O que é exemplar? Quem era aquele homem com quem eu tinha constantemente que pisar em ovos? Quem era aquele homem que precisava se pavonear de tudo o tempo todo? Quem era aquele homem que afastava de mim todos que me queriam bem, da minha família aos meus amigos pessoais, aqueles que não eram amigos em comum? Quem era aquela criatura que não conseguia aceitar o fato de ter uma companheira que lhe fosse intelectualmente superior? Sim, porque o cérebro por trás de todas aquelas viagens era o meu, jamais o dele. Isso sem falar no dinheiro. Quantos homens não "posam de bacanas" por aí às custas também do trabalho e do dinheiro de suas companheiras, sem lhes darem os devidos créditos? Quantas vezes não ouvi, nem ferrando que eu vou deixar de viajar neste final de ano, frase que vinha acompanhada de um bico, mesmo quando a grana estava curta? E a fatídica frase, dita no cartório, no dia da dissolução formal daquele buraco no qual havia se transformado a minha vida, agora vou ter que voltar a trabalhar às sextas-feiras. Até hoje, fico pensando se ele se deu ou não conta do que estava dizendo, aquele homem mimado e vaidoso.

Retomando a escuta, ontem ouvi uma fala maravilhosa, de uma mulher, Tania Rivera, sobre psicanálise antropofágica, título de um dos livros dela, e sobre mulheres. Ela citou um estudo dirigido por uma outra mulher, Rita Segato, num determinado presídio, no qual foram ouvidos, durante um período, homens que foram condenados por terem estuprado mulheres. A conclusão da pesquisa é que, no geral, esses homens, que levavam uma vida normal, um dia simplesmente foram levados a estuprar uma mulher por algo que na verdade tinha a ver com o olhar de um outro homem. Em outras palavras, o que estava em jogo na cena era o olhar de outros homens, como se o estupro fosse uma forma de validação da masculinidade do estuprador por outros homens. Surpreendente? Para mim, não. O que vejo, na vida real, é que os homens adoram os outros homens, basta observá-los juntos. Há um brilho, uma coisa, uma tensão, uma energia entre eles que não se vê entre mulheres ou entre homens e mulheres. Os homens gostam mesmo é dos homens, poucos são aqueles que gostam das mulheres. E o mesmo, infelizmente, pode-se dizer das mulheres. Poucas são aquelas que gostam das mulheres, a começar de si mesmas.

E sabe o que me ocorreu durante esse encontro de ontem? Que, seja lá o que isso for, a caneta é um objeto fálico. Pensei então na Cixous, nas nossas sessões, nos nossos fragmentos. Lembrei de você dizendo, é por isso que as mulheres precisam escrever, falar sobre si mesmas, quando eu disse ter ouvido de pelo menos três psicanalistas homens que os aplicativos de relacionamento haviam sido uma ótima invenção para as mulheres, principalmente para as mais velhas. Ótima invenção, como assim? Esses aplicativos, ferramentas que funcionam a partir de uma lógica capitalista grotesca totalmente moldada por aquilo a que hoje se dá o nome de masculinidade tóxica são bons somente para os homens, para mais ninguém. O machismo, a misoginia, os absurdos, as aberrações que se veem ali, quando você é uma mulher, é algo da ordem do aviltante, do obsceno (e eu não estou falando em termos morais). Eu, na condição de mulher, sobre os aplicativos, posso dizer apenas que tudo o que eu mais queria é que eles não existissem, pois de capitalismo selvagem, narcisismo primário, burrice, machismo e misoginia este inferno que é a nossa sociedade já transbordou.

Quem me lê pode até pensar, ah, ela odeia os homens, mas sabemos que não é disso que se trata. Sinto falta dos homens, daqueles que estejam dispostos a se posicionarem como sujeitos e não como objetos. Alguém que não se vê como um sujeito não consegue ver o outro, ou melhor, a outra, dessa forma. Na posição de objeto a vida fica restrita a poucas possibilidades, que estão infinitamente aquém daquelas que a posição de sujeito, com toda a sua complexidade, carrega. Algo muito comum nos aplicativos, e na vida real, é ouvir dos homens, quero leveza, quero uma relação leve, pessoas leves, mulheres leves. Ao que eu sempre penso, se você quer leveza, vá comer isopor. Converse com um isopor, viaje com um isopor, tome uma bebida ao lado de um isopor, vá ao cinema com um isopor. A resposta está aí, fácil, num pedaço de isopor. A pessoa não precisa se dar ao trabalho de fazer uma conta num aplicativo ou de interagir com qualquer outro ser humano seja por qual meio for. Basta um isopor. Também é muito comum, praticamente uma regra, ouvir, mulher enche o saco, mulher pega no pé, mulher tira a paz. Ao que eu penso, ótimo, então fique em casa, sozinho (ou com um pedaço de isopor), batendo uma punheta. Nós, mulheres, sendo tão inconvenientes assim, de fato, vocês devem mesmo se abster de qualquer contato conosco. Até porque, imagine só, sua majestade o rei bebê tendo que abrir mão, ainda que de uma parte ínfima, da sua rotina, do seu desejo, do seu dinheiro, das suas coisinhas, para escutar uma mulher? Sua majestade o rei homem tendo que abrir a mão para pegar na mão de uma mulher? Essa realmente parece ser uma hipótese que traz consigo fortes indícios de crime de lesa-majestade.

Você me diz, mas tem caras legais, e eu pergunto, onde estão? Aliás, onde estão as pessoas que não vivem em Dogville? Você então poderia me perguntar o que uma coisa tem a ver com a outra, ao que eu responderia que tem tudo a ver, que Dogville só é Dogville graças a isso que que está ali, permeando a sua base e mantendo as suas estruturas em pé. Sendo mulher, eu sei, eu sinto, que é impossível dissociar todo o mal que nos sufoca do mal que existe no sistema patriarcal, no machismo e na misoginia. Talvez a questão seja apenas ter olhos para ver e ouvidos para escutar. Dormir e acordar com um novo olhar para ver as coisas como elas são e não da forma pretensamente leve, com textura de isopor, que a nossa fantasia nos incita a imaginar. Meu corpo, aliás, está pesado e a raiva, a raiva estou cuspindo, exatamente como eu disse que faria. Aliás, para a minha surpresa, no final do encontro de ontem, a palestrante, enquanto empunhava a caneta e escrevia a dedicatória no livro que eu havia comprado, falou, vomite! Aqui estou, aqui estamos.
 
Itu, 12 de março de 2023.


*O nome do garoto foi trocado.

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