domingo, 28 de janeiro de 2024

A madeleine

Vienne/França
 

Às vezes penso que todas as minhas invenções são subterfúgios para não escrever. Invento isso, aquilo e aquele outro e então fico sem tempo, sem parada, sem energia. O fato é que tenho medo da escrita, da verdade que ela traz à tona, das horas durante as quais ela me mastiga para depois me cuspir.


A madeleine

Recentemente eu viajei. Fiz um intercâmbio, como fazem, em maior número, os adolescentes e os jovens adultos. Passei um mês vivendo sozinha num pequeno apartamento localizado num prédio que abriga residências estudantis, para o qual, confesso, cheguei a pensar em comprar uma planta. Fiquei encantada com Lyon, a cidade que escolhi para passar esse período, com os dois rios que a cortam, e me habituei a diariamente olhar para cima em busca do conforto e da orientação geográfica oferecida pela vista da Basílica de Notre-Dame de Fourvière, que paira sobre a cidade como uma bússola. Dormi e acordei pensando em comida, fotografei inúmeras vitrines de doces e comi, com a boca e com os olhos, as obras de arte açucaradas mas nem tanto que os franceses expõem em suas padarias e confeitarias. Provei em quantidades diárias o mais novo beaujolais nouveau que era acabado de chegar, flanei por livrarias e quase pedi um emprego em uma delas, que expunha os lançamentos acompanhados de bilhetes com uma crítica e uma recomendação da loja, bilhetes escritos à mão. Melhorei o meu Francês e fiz tudo o que mais gosto de fazer: fui ao cinema, ao teatro, a museus, à ópera local, a um espetáculo de circo, saí para beber com colegas de curso, viajei para cidades próximas e observei as pessoas com vagar e com cuidado, o que sempre me permite inventar e contar para mim mesma as histórias das suas vidas. Ouvi novas músicas, percebi o meu corpo impregnado de novos cheiros, andei até os meus pés quase não suportarem mais, me deliciei com a maciez das lãs que envolviam o meu pescoço, comprei um casaco novo e também novos livros. Proferi a expressão “c’est très mignon” umas duas centenas de vezes e passei dias felizes, com poucas noites de insônia, mergulhada numa cultura que me abraçava com o mesmo calor produzido pela degustação de uma madeleine acompanhada de uma xícara de chá. Na véspera da partida, em meio ao frio cortante e a uma chuva de gotas largas que insistia em cair das nuvens que acinzentavam o céu, andei pela cidade como quem está prestes a deixar uma pessoa muito querida. E de fato eu estava na iminência de abandonar não só uma cidade que havia se encaixado em mim como uma roupa feita sob medida, macia e muito confortável, mas também as pessoas desconhecidas que ali viviam e que eu tanto gostava de observar e aquelas que em tão pouco tempo passaram a fazer parte do meu cotidiano, como a adorável dona da lavandaria na qual eu lavava as minhas roupas e a do restaurante vietnamita que havia se tornado o meu preferido. Até agora sinto a estranheza daquela véspera, da tarde que passei com novos amigos num café trocando impressões e histórias tristes e outras engraçadas, até que uma das pessoas precisou ir e se despediu quase como se fôssemos nos ver amanhã no mesmo lugar. E então de três restaram dois e seguimos com o nosso falatório até o cinza do céu virar grafite e nós nos virarmos um para o outro em pé na calçada do lado de fora do café para nos despedirmos com uma dupla de abraço e beijo calorosos que eu não esperava, não eu, que já fazia tão parte daquilo tudo e para quem uma despedida de braços quentes e olhos úmidos não fazia o menor sentido. Foi somente no dia seguinte, quando o meu olhar se chocou, na saída do metrô, contra a placa indicativa do caminho para a parada do trem que me levaria ao aeroporto, que o sem sentido se abateu sobre a minha cabeça como realidade cheia de conteúdo lógico. Caiu como uma pedra que vem rolando lá de cima e provoca dor daquelas que fazem a gente ter vontade de chorar de aflição.


Uma mulher incomoda muita gente; uma mulher sozinha incomoda muito mais

Antes de viajar, e eu viajei quase que imediatamente após o meu aniversário de quarenta e cinco anos, o que foi um erro, pois agora percebo que deveria ter ido antes, fiquei intrigada com a quantidade de votos de suposta felicidade recebidos cujo teor era basicamente o mesmo, espero que você encontre um francês por lá! O frisson com essa fantasia era tamanho que até o novo marido de uma amiga, o qual me viu não mais que duas vezes na vida, enviou os seus votos casamenteiros ou coisa que o valha por meio da esposa, a mesma que ao longo da viagem, que ela acompanhava virtualmente, ficou horrorizada com a quantidade de doces que eu ingeria diariamente, ela, que tanto preza pela magreza e abomina a gordura, especialmente quando alojada numa mulher, pois que homem vai querer uma mulher gorda, e pouco importava se a comida era parte indissociável daquela cultura, se era gostosa a não mais poder, se boa parte do prazer e do aprendizado relacionados àquela viagem estavam necessariamente ligados ao ato de comer, o importante mesmo é se manter bonita dentro dos padrões, fundamental é ser convencional, é ser magra e ter um homem, e eu fui e voltei sem nenhum.

Que pena que você não achou um francês bem rico por lá, rezei tanto para você voltar casada com um homem rico, tem muitos franceses por lá, são bonitos os franceses, não conheceu nenhum, ah, que pena, sério, mas nenhum mesmo, e o assunto viagem, a despeito de todo o resto, a despeito da própria viagem, cessava aí, com a minha incapacidade de ter encontrado, como se fosse um canivete cheio de utilidades que se acha ou não disponível numa loja, um homem que me salvasse, que me acompanhasse, que eventualmente viesse a pagar as minhas contas e viagens e cursos e livros e as sessões de análise e o plano de saúde e os médicos particulares e o veterinário e o IPVA do meu carro que é o que sobra pois que o carro em si foi integralmente pago com o meu próprio dinheiro sem que houvesse qualquer homem envolvido além do vendedor da concessionária com o qual sigo em débito por não ter ainda preenchido a pesquisa de satisfação com nota dez que é algo que segundo ele lhe será muito útil, enfim, um homem que viesse a me dar coisas que eu não sei quais são mas que as pessoas que me desejam tanto um homem canivete obviamente devem saber e que provavelmente são apenas o acessório da fantasia principal, aquela de que uma mulher precisa de um homem para ser completa, válida, para ser uma mulher de verdade e se fosse simples assim, meu deus, se fosse simples assim a completude que é uma coisa que não existe para ninguém nem mesmo para os homens imaginariamente completos que saem por aí estufando o peito e exibindo um pau, e para eles ninguém deseja ou pergunta se encontraram uma mulher para casarem e serem felizes pelo resto da vida quando viajam.

Pensando sobre o assunto eu várias vezes me perguntei se não passou pela cabeça de ninguém que eu estaria sozinha num país distante e que por mais que os homens na França sejam menos machistas e sexistas do que os homens no Brasil, eles ainda assim são machistas e sexistas e por origem das coisas misóginos e que eventualmente me aventurar com um estranho qualquer poderia incorrer em riscos desnecessários ou em situações desagradáveis que poderiam melar todo aquele delicioso caldo no qual eu estava me refestelando, eu e a minha solitude, eu e a minha paz, mas é claro que não, pois como uma mulher sozinha pode ter paz e prazer, só posso estar mentindo mas não estou, eu só estou cansada, tão cansada de tanto pensamento flácido e bobo e pueril que demorei a escrever, que me irritei com vagar, que tive uma coisa crescendo no peito e subindo pela garganta que só falei para a analista e para o outro médico, o que às vezes me faz sentir criança e chorar como se fossa outra e não eu a verter lágrimas que ele arranca de mim com alguma frase certeira naquele consultório que ao longo de quarenta anos ocupou várias salas mas que segue sendo o mesmo, a mesma pequena estatueta de uma santa sobre a mesa, a mesma caneta Montblanc, as mesmas folhas de papel pautado onde ele anota todas as palavras que formam o livro no qual vem se transformando o meu prontuário, falei mas não deixei, até agora, que a coisa descesse até os dedos, e quando desce é um alívio, é um complemento, é um vazio preenchido de palavras contornadas que podem ser vistas e lidas e relidas e pensadas no mesmo ritmo em que foram nascendo.

E durante uma conversa uma amiga observou que eu provavelmente estou sozinha em razão dos meus posicionamentos femininos e eu tenho certeza que ela trocou feministas por femininos e então na hora eu não disse nada, só fiquei ali me deliciando com a troca de palavras, com o ato falho, pois a psicanálise, como recentemente constatou a minha analista, não sai de mim, nem tampouco a escrita, não consigo me livrar nem de uma nem de outra, não quero me livrar, e achei curioso e muito bom isso do meu dito posicionamento feminista ser inconscientemente reconhecido como um posicionamento feminino pois que o meu posicionamento feminista é só o desejo expresso em atos e palavras de ser reconhecida como um ser humano e que se foda o sexo, o gênero, só quero ser humana que é o que sou antes de ser qualquer outra coisa e eu não fico o tempo todo pensando ah, eu sou uma mulher então tal coisa, ah, eu sou uma mulher então tal outra coisa, eu sou uma mulher então eu preciso de um homem, eu sou uma mulher então eu preciso viver assim ou assado, eu sou uma mulher então eu não posso fazer isso ou aquilo, eu sou uma mulher, eu sou uma mulher, eu sou uma mulher, não, o tempo todo eu penso eu preciso fazer porque eu vou morrer, eu preciso viajar porque eu vou morrer, eu preciso escrever porque eu vou morrer, eu preciso viver porque eu vou morrer, sendo eu um sujeito quase indeterminado, sendo eu essa coisa que jorra palavras que vêm sabe-se lá de onde e que não tem tempo nem nome nem sexo nem gênero nem nada que seja classificável ou nominável, só eu.

Eu continuo pensando muito na morte e o outro médico então me diz você pensa tanto na morte que aí você não vive e é verdade eu andei pensando muito na morte e deixei de viver por estar meio morta mas agora a morte tomou um outro nome que é o luto e que inclusive parece estar em alta e numa sequência eu li memória de ninguém que é um luto só e assisti anatomia de uma queda que é outro luto que obviamente se instaura de fato quando o processo tem fim, o processo, essa nódoa jurisdicional que foi inventada talvez por aqueles que tinham o desejo mas não o talento literário para contar histórias, e agora estou em meio ao desenrolar de não fossem as sílabas do sábado, no qual me vejo mergulhada no luto daquela mulher e daquelas mulheres e o andré em alguns momentos é quase como se fora meu o marido que morreu e eu vou ficando mais dentro e dentro e dentro de mim e o luto da ana é como se fossem os meus e então eu preciso acabar logo com isso e sair desse lugar que me consome, deprime e me deixa estatelada olhando para a luz do abajur refletida no teto.

Ana está ressentida com a sua perda, em anatomia de uma queda pergunta-se à protagonista se ela se ressentiu com o marido por ocasião do acidente com o seu filho. Eu dizendo que não, que um homem não poderia compor a mesa naquela situação, e de repente ouço precisamos ter cuidado para não nos tornarmos mulheres ressentidas, e depois dessa frase, dita no mais improvável dos contextos, para além da perplexidade que me tomou, pensei no quão curioso era o fato de que há muito tempo penso em escrever um texto justamente intitulado os ressentidos, uma homenagem às avessas a todos os homens trasbordantes de ressentimento que passaram pela minha vida e que não foram poucos e pela de muitas mulheres que eu conheço e de outras que desconheço mas cujas histórias estão aí, nos livros, nos filmes, nas revistas, nas matérias de jornais, nas histórias que ouvimos alguém contar. Ressentidos que ao longo dos séculos vêm tentando nos manter belas, mudas, cegas, burras, recatadas e do lar e em relação aos quais, na opinião de algumas mulheres, nós precisamos ter cuidado para não nos tornarmos ressentidas. E aqui eu retomo o meu posicionamento feminista apenas para afirmar que se o desejo de que nós mulheres tenhamos voz, dignidade, autonomia e liberdade na mesma medida dos homens fizer de mim uma mulher ressentida, eu estou completamente tomada de ressentimento e penso que a frase, especialmente no contexto em que foi dita, deveria ter sido outra, precisamos tomar cuidado para não nos transformarmos em mulheres mortas, literal ou metaforicamente, por todos aqueles que não querem ouvir as nossas vozes.

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Escrever é muito perigoso, eu sei, e essa frase não é minha, é da Olga Tokarczuk, mas ao mesmo tempo que amedronta, acolhe, como a madeleine com chá, como o brinquedo preferido de uma criança, como Lyon ou outra cidade que possa ser narrada dentro de uma história, seja ela inventada ou não, como esta tarde de domingo, que me foi inspirada também pelas sílabas de um sábado.

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