terça-feira, 5 de setembro de 2023

Kinder Ovo

Funciona assim: algo se abate sobre o corpo, pois é nele que tudo acontece. Cabeça também é corpo. Tontura. Taquicardia. Arritmia. Falta de ar. Falta de concentração. Ânsia de vômito. Diarreia. O corpo quer girar, desequilibrar, acelerar, parar, desconectar, expelir. Quer falar e quer calar. Quer correr e quer ficar. O corpo não tem parada, não sabe o que quer. Olha para o outro corpo que está deitado ao seu lado e não consegue se fixar nos sons que saem da boca que nele se movimenta. Entre os corpos se instalou um anteparo visível apenas para um deles. O corpo que fala não sabe o que acontece com o outro que, em silêncio, faz a pergunta, e se ele soubesse?



É muita vida acontecendo, um amigo me diz, e eu dou uma remexida na cadeira. Sim, é muita vida acontecendo quando eu mal saí de um período de muita morte. Tanta morte que eu poderia parafrasear a Milly Lacombe, que escreveu O ano em que morri em Nova York, que a propósito li assim que voltei do hospital em 2021, e escrever um livro intitulado 2023, o ano em que definitivamente morri em S. Definitivamente pois a minha foi uma morte gradual, que teve início alguns anos antes de 2023 e que, não fosse a brutalidade imposta pelos acontecimentos finais, poderia ter até passado desapercebida.

S., hoje eu entendo, é como um Kinder Ovo: parece boa por fora mas, por dentro, carrega surpresas desagradáveis, com cores e formas especiais reservadas a quem lhe é estrangeira.



Sempre achei bonito o dia do meu aniversário, primeiro de novembro, que é o Dia de Todos os Santos. Acho bonito por achar, pela sonoridade, por um quê de vida que parece se contrapor à morte que é lembrada no dia seguinte, dois de novembro, Dia de Finados.


De todas as belíssimas igrejas existentes em Florença, a que mais gosto, a que eu visitaria com frequência se morasse na cidade só pelo prazer de sentir a vibração do lugar, é a Igreja de Ognissanti, ou seja, a de Todos os Santos, na qual venho pensando repetidamente, desejando escrever sobre ela. Foi assim, aliás, que comecei a escrever, usando o pretexto de falar sobre viagens. Digo pretexto pois hoje acredito que a escrita era sobre outra coisa. É possível que fosse sobre a vida.



Quando muita vida acontece, especialmente a uma certa altura da existência (como me fez notar o amigo do parágrafo lá de cima), tudo pode acontecer, na realidade ou somente na fantasia. O recalcado pode voltar, a angústia e o medo podem se intensificar, referências podem virar vapor e, principalmente, pode ficar difícil manter a ilusão de controle. A vida, disse Guimarães Rosa para o mundo e disseram a minha mãe e o meu médico homeopata para mim recentemente, demanda coragem. Eu ouço e fico pensando nas pessoas corajosas, como uma amiga, minha chefe, que outro dia, ao me ouvir falar sobre um dilema, sobre uma situação que envolvia um risco, simplesmente me disse, mas no fim das contas essa é justamente a graça da coisa, o risco. Boquiaberta, olhei para ela com admiração e respeito, da mesma forma que uma criança olharia para um adulto. Nunca passaria pelo meu narcisismo infantil, que quer se agarrar a todas as seguranças possíveis, ao paraíso da placidez e da estabilidade, a ideia de que a graça da coisa esteja no risco que ela apresenta.

No entanto, contraditoriamente, vivo me atirando em situações que demandam uma certa aposta. Vivo, ainda que eventualmente aos tropeços, tentando dar um corpo, uma voz, uma expressão, uma letra para o que eu sou. Escarafunchando em busca do desejo. Do meu desejo de não morrer nas palavras, de engolir a vida que há lá fora e de atirá-la de volta para o mundo, ainda que seja em forma de piada, pois é provável que o meu maior desejo, ao fim e ao cabo, seja mesmo o de me divertir, fazer aquilo que certa vez ouvi um desconhecido gritar para a amiga com a qual ele fazia dupla numa parede de escalada: Raquel, não esquece de se divertir! Talvez por isso eu ache tão tediosamente fascinante um certo tipo de seriedade que cabe dentro de um quadrado. Sempre que leio essas apresentações de caráter profissional que hoje parecem ser uma tendência nas redes sociais fico me perguntando como é estar na pele de alguém tão perfeito, tão reto, tão socialmente adaptado. Passei também a imaginar a minha apresentação e concluí que seria mais ou menos assim:

Olá, sou a Camila Guido, uma ateia que visita igrejas e consulta regularmente uma cartomante. Tenho 44 anos e muito em breve completarei 45, quando espero resolver de uma vez por todas, para o bem ou para o mal, a minha atual crise da meia-idade. Minhas amigas e meus amigos me identificam como uma pessoa calma e razoável, chegando a pronunciar em voz alta tais palavras, o que, com pesar, sou obrigada a desmentir, afirmando que não passo de alguém bastante dodói da cabeça, cujos pensamentos excessivos me colocam eternamente à beira de um abismo no qual acredito piamente poder despencar a qualquer momento, que é o da loucura. Sou dada a excessos de outras naturezas também, como aqueles que dizem respeito ao corpo, e tenho um senso de humor por vezes demasiado ácido e eventualmente ofensivo (embora a ofensa, como salvo engano já disseram por aí em algum texto sagrado, esteja nos ouvidos de quem ouve). Até o advento da pandemia o meu maior hobby era frequentar salas de cinema, nas quais sempre abominei a presença de pipoca ou de qualquer outra fonte de barulho que não estivesse diretamente relacionada ao filme. Acabo de vender minha casa e meus bens mais preciosos atualmente são minha escrivaninha, minha estante de livros e, claro, os próprios livros. Minha família se resume a dois cachorros e a uma mãe, todos extraordinários e que muito provavelmente são a melhor parte de mim. Tenho uma relação doentia com os cães, os quais assedio com constantes beijos e abraços e dos quais sinto saudades extremas após poucas horas fora de casa. Anos de terapia e de análise me fizeram desistir de manter o mesmo tipo de relação com a minha mãe. No entanto, sigo telefonando para ela durante as madrugadas, quando as crises de ansiedade se tornam insuportáveis. Ultimamente tenho ouvido no repeat Lugar Nenhum, dos Titãs, já que, apesar de duas nacionalidades, família (ainda que diminuta), amigos (felizmente em maior número) e de um trabalho estável, letra e música são o resumo preciso da energia que anda circulando em mim. No momento o meu desejo mais profundo é morar num quarto de hotel, onde tudo seja magicamente resolvido pelos adultos responsáveis pela administração do estabelecimento, incluídas no pacote as questões atinentes ao funcionamento prático da minha vida. Estou solteira e tentando não desistir do amor, conforme sugestão que me foi dada por um amigo (de novo aquele) a título de desfecho para uma conversa super alto astral sobre o tema.



O que você achou? Talvez um pouco pueril, não? São fragmentos, como você deve ter notado, como venho fazendo ultimamente. Sem muito controle, com diversão. Chego a sorrir, até a rir enquanto escrevo, sabia? É das coisas mais divertidas que existem. E não é nada seguro.

À meia-luz, a voz dela me estabiliza no divã: e o pulso ainda pulsa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário