quinta-feira, 20 de julho de 2023

Esquadros

Um quarto em Pequim. As janelas, uma parede de vidro. Contrariando as expectativas eu dormia, mas despertava voluntariamente às cinco horas da manhã, a luz explodindo pelas frestas da cortina, toda uma cidade silenciosa lá embaixo. Trigésimo, quadragésimo, quase quinquagésimo andar. Em Pequim, para minha surpresa, havia mais silêncio do que em São Paulo, tanto no alto de um edifício como com os pés plantados nas ruas. Eu me via dentro de um filme, lost in translation, descoberta, aberta a todo o estranhamento que advinha daquele mundo novo tão velho. As palavras, ali, não tinham serventia. Eu tentava escrevê-las, mas elas não saíam. Estavam ocupadas demais assistindo ao desdobrar da estranha que se desenrolava em mim. Quem era aquela que não fazia a menor questão de controlar nada, que sorria maravilhada para as espirais de sons e de sinais ininteligíveis que a envolviam, emitidas por olhos e bocas e megafones que se espalhavam por todos os cantos, menos ali, dentro daquele quarto, onde a solidão e as janelas que não podiam ser abertas por vezes a sufocavam? Talvez a estranha fosse a própria solidão, a marca inicial, o umbigo do sonho. O indizível, que cava em busca das palavras, que as desenterra, como fizeram os chineses com os bonecos, os guerreiros de Xian.



Os poucos metros quadrados cujas paredes eram revestidas de azulejos portugueses, um espaço que era também uma passagem. Uma senhora sentada sozinha num dos cantos do quadrado, tricotando. Assim que a vi, pensei na minha avó.

Mais tarde, na mesma vila de Óbidos - que apesar da beleza me fazia pensar em mortos -, vi uma névoa espessa e branca como os muros medievais que um dia protegeram o vilarejo tomá-lo de assalto, tornando o seu interior úmido e indistinto. A luz amarela que de maneira uniforme tingia toda a extensão da entrada do restaurante do hotel, fazendo dele um farol, era a única a aquecer um pouco os arredores. De resto, nem o vinho, nem a camiseta que eu havia levado na mala e que guardava o cheiro do homem pelo qual eu havia me apaixonado poucas semanas antes de viajar, eram capazes de dispersar a solidão que, simultânea à névoa, havia me tomado.



Ele vestia uma camisa azul que apesar do seu corpo magro e delgado deixava entrever partes da pele do peito. A camisa, pequena, justa demais, havia sido uma escolha ruim. Será que aquele era um tecido elástico? Qual seria a textura dele? A depender dos seus movimentos, uma fresta se abria ao longo da linha vertical entre um botão e outro, bem na altura do coração. Aquilo me causava um incômodo, um constrangimento. Eu olhava a abertura e me forçava a desviar o olhar, a não me demorar ali. Imediatamente, contudo, os meus olhos eram novamente sugados para aquele ponto. À medida que ele se movimentava, que ele falava, a fresta se abria e se fechava, deixando mais ou menos à mostra uma nesga de pele pela qual eu não conseguia me decidir a sentir repulsa ou atração. Uma escolha ruim, eu repetia para mim mesma.



Um corpo bateu contra o chão, vindo do céu, do paraíso ou do inferno nos quais pode se transformar um quarto de hotel. Da mesa onde eu estava, através do vidro, eu o vi passar. Cair. O corpo de um homem, magro, barba e roupas brancas. O homem com quem eu me encontraria mais tarde naquele mesmo dia, numa outra cidade de um outro país, havia me contado que, certa vez, caminhando pelas ruas da Antuérpia, topou com um dedo humano jazendo no chão. Logo após a queda, o corpo não se moveu. Ficou ali, descontextualizado, jazendo entre as mesas vazias do pátio do hotel. De repente, sem me dar conta, passei a atuar num filme do qual era também espectadora. Abandonei a mesa de café da manhã e me movi na direção das escadas e do elevador, topando, aqui e ali, com outros hóspedes que faziam o mesmo. No quarto, ao qual cheguei num corte de cena, alcancei a minha mochila e a escova de dentes que ainda estava sobre a pia do banheiro e saí atravessando as escadas, a recepção e a praça que dava acesso ao famoso zoológico da cidade e à estação de trem que, naquela época, salvo engano, era tida como a mais bonita da Europa ou até do mundo. Ali, esperando pelo trem, fiquei entre Hitchcock e Buñuel.



Num quarto de hotel em Berlim, um homem e uma mulher estão estendidos sobre a cama, enlaçados. Por muito mais do que seis minutos, nós fomos intensamente felizes. Todas as músicas, todos os shows, todas as cidades. O mundo seria nosso. Havíamos invertido a ordem das coisas e primeiro tomado Berlim. Faltava Manhattan, cujo cerco era só uma questão de tempo.

O tempo. A eternidade passada num quarto de hotel.



Florença vista da estrada, de cima de uma bicicleta, numa manhã de julho. Assustei quando a vi. Depois chorei.

Florença vista do alto da colina da Igreja de San Miniato al Monte no fim de uma tarde de novembro. A luz do dia se transformando em escuridão da noite, exceto pelas infinitas luzes que se acenderam na cidade. Uma joia cintilante, enfeitando as duas margens de um rio. Mais uma vez, chorei.

Roma, o interior da cúpula do Pantheon. Ainda que eu cave e desenterre palavras em número similar ao das estrelas, jamais encontrarei uma forma adequada de dizer. Como a angústia, a beleza em estado puro é da ordem do indizível. Chorei.

A Itália nunca é demais, e é também o melhor lugar do mundo para chorar.



Um domingo de ramos em Buenos Aires. As pessoas nos arredores das igrejas levavam consigo ramos nas mãos. Eu me dei conta da data e pensei no meu avô. Domingos. Então eu pensei, que nome lindo o do meu avô. Dizem que o pai dele, Genaro, era um homem bom. Veio da Itália num navio, saído, ouso imaginar, do Porto de Nápoles. Muito católico. Teve o seu nome, que é também o meu, cambiado. Guida por Guido, o preço a pagar pelo sonho ou pela necessidade de começar uma vida nova num país novo. Achei tão bonitos os ramos, tão singelos, fiquei encantada. Eu era muito jovem, vinte e dois, vinte e três anos, e não tirei fotografia alguma daquela viagem. Somente a vivi e penso que poderia reconstitui-la textualmente, apesar dos muitos anos que me separam dela, com bastante exatidão. Já naquela época, andando sozinha pelo mundo, eu via tudo enquadrado na folha de um papel, nos ramos de um domingo.




P.S.: O título deste texto é propositadamente o mesmo da canção de Adriana Calcanhoto. O texto faz referência ainda a canções de Otto, 6 Minutos, e de Leonard Cohen, First We Take Manhattan.

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