domingo, 9 de julho de 2023

Isso também é viver

Há livros que nos atravessam como estacas que se fincam forte no peito. Numa madrugada recente, um desses livros, A chave de casa, de Tatiana Salem Levy, fez meu peito esquentar e arder de aflição enquanto o meu estômago dava voltas ao redor de si e o restante do meu sistema digestivo se desarranjava, assim como o meu sono.

De novo não, eu pensava, de novo não. Eu pensava em outras noites de aflição semelhante. Eu pensava descontroladamente na morte, na minha, na da minha mãe, na falta de ar que eu temia sentir, na casa que eu não sabia querer ou não querer mais, na cidade que eu não sabia querer ou não querer mais, na vida que eu não sabia querer ou não querer mais, na angústia que eu sabia não querer mais. Eu pensava no casal que transava em um dos quartos de um imenso e belíssimo prédio situado numa praça de Florença, aquela próxima ao mercado, cujo entorno é enfeitado por cobiçados itens de couro feitos à mão. Os dois jovens mal disfarçavam o ato enquanto olhavam pela janela, ora ambos, ora somente ela, a vida que pulsava lá embaixo, a vida que os fazia pulsar com ainda mais intensidade diante daquela janela aberta para um mundo inteiro de vozes e de olhares, de texturas e de cores, de palavras pronunciadas em muitas línguas. Eu pensava na cena e tentava adivinhar qual era o sabor do sorvete que eu levava aos lábios enquanto os observava, encantada com a ideia que haviam tido. Eu pensava em mim, no jogo que um dia, fazendo parte de um casal, havíamos estabelecido entre nós, a contagem das cidades nas quais havíamos transado. Quantas, quais? Era o melhor jogo do mundo, o que mais me aprazia. E contudo, acabou, como acaba tudo. Eu não quero que acabe, eu pensava, e pensava nas noites que viriam, num outro idioma, numa outra cama, num outro quarto, sem o peso do corpo da Amora junto ao meu, sem o ressonar do Sig ao meu lado. Como serão as noites, se forem como esta? Como vou suportar, sozinha, tamanha angústia, eu pensava.

Eu pensava, mas isso somente depois, que angústia é uma palavra vazia, diferente do medo, que é cheia do medo de algo. Angústia é nada e ao mesmo tempo é uma palavra toda que se espalha pelo corpo, que desenha linhas espiraladas ao redor do peito, dos olhos, dos maxilares, das têmporas. Angústia, eu pensava, é um nada que envolve tudo e que faz o corpo arder de calor e de horror diante do vazio.

Eu pensava no sexo. Pensava na janela que nós abríamos nas madrugadas, uma fenda no espaço, o tempo em suspensão. Você pensava que nós tínhamos todo o tempo do mundo, você dizia que nós tínhamos todo o tempo do mundo, mas era mentira. Ninguém tem todo o tempo do mundo. Nós vamos todos morrer, talvez hoje, talvez amanhã. Será que você não pensava nisso? Você pensava que sabia tudo sobre o sexo, que uma mulher, mais velha, havia ensinado tudo para você. Você dizia, essa tatuagem foi um presente, esse quadro foi um presente, e eu pensava em você como um gigolô, essa palavra que, como todo clichê, soa engraçada e triste. Certa vez você me disse que houve um vazamento de água no seu apartamento e que, mesmo avisado e sabendo que os seus cachorros estavam lá, você esperou a balada terminar para voltar para casa. Quando chegou, havia muita água e os animais estavam assustados. Nós, humanos, somos como os peixes, morremos pela boca. Assim como a chave do sonho está no seu detalhe mais ínfimo, as chaves de uma pessoa estão nas palavras escapadas, nas confissões que não se sabem confissões. Eu pensava, agora, que o mais importante sobre o sexo você nunca soube.

Eu pensava que, mais jovem, eu nunca pensava em nada disso. Eu não pensava, só sentia. Sentia a náusea da existência de quando em quando, de bar em bar. Deparava com ela estampada nas páginas escritas por Sartre, no canto superior direito de uma página preenchida com o pensamento de Wittgenstein num livro cujo nome era azul, num romance de Simone de Beauvoir onde a morte, ela novamente, aparecia como a convidada. Você faz muitas citações, assim fica mais difícil as pessoas entenderem o que você escreve. Será? Pois se as citações são parte de mim. É com os livros que eu converso de verdade, e com os filmes. Escrever talvez seja uma forma de exibir uma pretensa cultura, já me foi dito também. Pois se me mostrar, ocupar o meu espaço, sempre foi o mais difícil. Falar, escrever, ter voz. E se eu não souber ser de outra forma, se eu só puder ser assim, extravasada das vozes dos outros que me fizeram companhia, que me ajudaram a transformar, aqui e ali, o balde de água turva da angústia na cartola do mágico, da qual eu posso tirar palavras para brincar, para preencher, com algo que não seja nada, o caminho entre o viver e o morrer? Como eu gosto de dizer, mesmo sem saber se essa frase é minha ou a quem ela pertence, cada um dá o jeito que pode com o que tem. Aliás, será que as frases, depois de soltas por aí, pertencem a alguém?

Quando eu era mais jovem e me via, na véspera de uma viagem, ou às vezes poucas horas antes do voo, fazendo a mala, eu não pensava nas noites que teria pela frente, em como elas seriam. Eu pensava somente nos dias e, apesar de dizer que sim, não sentia medo. Você não tem medo de viajar sozinha para outro país? Eu respondia que sim, mas no fundo não. Bastava fechar a porta do táxi que me levaria ao aeroporto e tudo estava resolvido, a viagem, outra das mágicas disponíveis dentro da cartola, estava começando e isso era tudo o que importava naquele momento. O que importava era o momento. Não havia celular como o conhecemos hoje, smartphone. O momento, que não podia ser compartilhado, era, por si só, delicioso, glorioso até. Eu pensava, sem conseguir mais ficar deitada na minha cama, mas ainda insistindo em permanecer ali, eu pensava, olhando para o teto, na penumbra, que o mundo atual, o mundo onde o momento não existe mais, onde o momento passa diante da tela de um celular, é o mundo mais triste e odioso do mundo, um mundo no qual se compartilha nada com ninguém, no qual selfies e stories parecem ser uma tentativa desesperada de afirmarmos, para nós mesmos, que existimos, que a nossa vida, por mais ordinária que seja, tem algum propósito, que não estamos tão sozinhos assim. As redes sociais são as igrejas do nosso mundo derretido, volátil, envolto num vapor barato. Eu pensava, então, que o melhor seria rezar. Eu rezava e nada acontecia, a angústia não passava, ninguém me ouvia, ninguém respondia, o peito ardia cada vez mais. Eu andava pela casa e pensava nas noites de insônia da minha mãe, nas noites em que ela perambulava pela casa na minha infância e adolescência. Será que se eu deitar no sofá passa? A minha mãe fazia isso às vezes. Mãe, você está acordada? Eu andava pela casa e pensava que eu precisava parar de pensar. Como será, um mês, um mês sozinha, longe de toda a rotina da qual eu reclamo mas que me serve de anteparo de mim mesma? E se eu enlouquecer e não houver ninguém lá para dizer o meu nome, para me lembrar de mim? E se eu me abandonar para sempre? Mas essa não é a primeira vez que você viaja sozinha por um mês, eu pensava. Não é, mas é a primeira vez depois da pandemia, e isso deve ter algum significado. Antes da pandemia eu não havia sido apresentada ao véu da ansiedade. Antes da pandemia eu não havia ficado duplamente imobilizada pela ameaça de um vírus e por três parafusos que precisavam se fixar à minha carne antes de eu poder voltar a colocar os dois pés no chão. Eu pensava, eu venho pensando muito sobre isso, na ferida ainda não cicatrizada que a pandemia deixou em mim. Ninguém mais fala sobre elas, sobre a pandemia, sobre as marcas, as feridas, ninguém mais quer saber disso. O problema é que isso volta, a todo instante, volta, eu pensava. Será que vai voltar quando eu não estiver aqui? Talvez o melhor fosse mesmo me render a um remédio, a algo que coloque uma tampa nesse buraco. O telefone então tocou, como uma panela de pressão que explode, filha, aconteceu alguma coisa? Não, mãe, não aconteceu nada. É só que eu estou com insônia, estou ardendo, estou ansiosa, estou angustiada. Filha, você está viva, é só isso. Isso também é viver.

Sorocaba, 8 e 9 de julho de 2023.

Nenhum comentário:

Postar um comentário