domingo, 25 de junho de 2023

Titane

Jacques Hold é um homem que chora diante de uma janela. Marguerite Duras o criou assim.

Ouvi, se você fosse um homem, essa situação teria sido rapidamente resolvida, na porrada, pois é assim que os homens resolvem as coisas. É?

Porrada é um substantivo feminino; palavra, lei, simbolização, castração e escolha também o são. A diferença então está no verbo?

Escolhi assistir a um filme chamado Titane. Gosto do nome, gosto do gosto de dizer as palavras na língua do filme. Mas dele inicialmente não gostei. Desgostei tanto do incômodo que ele me causou que falei dele para você com desprezo, com horror. E depois falei de novo, ressentida de mim mesma, da minha negação. Titane é sobre precisar desesperadamente ser amado, só que é sobre isso de uma forma bruta. Ele é brutal e ao mesmo tempo frágil, tão escancaradamente grotesco na sua sensibilidade rosa néon. Cores e sons que não se coadunam com cenas que, se existissem no mundo real, aconteceriam num outro cenário. Titane é uma luta, seus protagonistas lutam por algo que mal parecem perceber. Desejam sem saber o quê. Lutam dentro da banalidade da vida, pela vida, que no fim é vencida por ela mesma. Titane, titã.

De novo voltei a pensar muito na morte. Vou manter esse pleonasmo pois gostei dele. Vou repeti-lo, inclusive, agora com uma vírgula: de novo, voltei a pensar muito na morte. Ouvi a Mariana Salomão Carrara dizer numa entrevista que ela também pensa muito na morte, que a ela soa como um descalabro. Descalabro. Nunca alguém expressou tão bem o que é a morte. São maravilhosas as escritoras, não são? Encontram palavras até para a morte. Eu tenho acordado de madrugada e pensado, será que na hora da minha morte estarei cansada da vida a ponto de querer morrer? Será que é assim que acontece? Estou assumindo que morrerei muito velha, mas muito mesmo, pois sou incapaz de aceitar qualquer outra possibilidade. Então, o que você tem a dizer sobre isso, você acha que no momento dessa morte velha o que a gente mais quer é morrer? Eu acho que não. Estou certa de que na hora da minha morte vou ficar puta, puta inclusive por não ter mais a possibilidade de desejar ser uma puta. Aquele comentário entre Lol V. Stein e Jacques Hold sobre Tatiana Karl, sobre a puta que ela é, a propósito, é o exemplo perfeito de cena literária que desenha a cumplicidade entre dois personagens. Eu a li hoje, enquanto almoçava, eu, o gato sem rabo sentado no meio do restaurante, assustada ao ser interpelada pela garçonete com uma pergunta que me pareceu absolutamente descabida naquele momento, a ponto de eu mal compreendê-la, você quer mais alguma coisa? O que mais eu poderia querer, eu poderia ter respondido, com o meu deslumbramento, mas não, disse somente, com os olhos, não, obrigada. Como são maravilhosas as escritoras que nos induzem a agir com a mesma loucura das suas personagens, você não acha?

Uma mulher que trabalha num restaurante no qual almoço com frequência me disse que olhar para mim, com o meu livro, a faz sentir calma. Achei divertido e confessei a ela que, caso ela estivesse me vendo por dentro, teria outra sensação. É isso o que lhe parece quando eu falo com você, que eu sou um amontoado de coisas desconexas e apressadas? A mim, é.

Tentando conectar as pontas dos fios das histórias que ouço desde sempre, perguntei para a minha mãe, mas por que você vive dizendo que cresceu nos corredores do Hospital Matarazzo? Ela então me contou que era para lá que a minha avó era levada pelo meu avô nas inúmeras vezes, madrugadas, em que apresentava crises de pânico, ocasiões nas quais minha mãe e meu tio iam junto. Lá, A., o grande amigo do meu avô, cuidava dela. A. morava no hospital desde a época da faculdade. Muito pobre, não tinha dinheiro para viver em outro lugar durante os seus estudos, de maneira que o hospital permitiu que ele se alojasse em um quartinho que ficava no porão. Ao terminar a faculdade de Medicina, tendo adquirido tuberculose em razão das condições nas quais vivia, prometeu que, caso se curasse, jamais cobraria por uma cirurgia. E assim foi feito, até o fim da sua vida. Considerado um dos melhores cirurgiões da sua área, nunca cobrou pela realização de uma cirurgia, fosse quem fosse o paciente, pobre ou milionário. Ele, que depois também cursou a faculdade de Direito e entrou para a vida política (não sei se necessariamente nessa ordem), jamais deixou a Medicina e sempre teve o seu quarto no Hospital Matarazzo. Mas, para além dos feitos interdisciplinares do nosso personagem (o dinamismo é algo que me encanta nas pessoas que são muitas, ou seja, que não se identificam com ou se interessam por apenas uma coisa), há uma história dentro da história de A. que insiste em voltar a minha mente. Uma história, aliás, de (des)amor.

A., um rapaz paupérrimo do interior, apaixonou-se por uma moça rica de sua cidade, e ela por ele. Contudo, dadas as circunstâncias econômicas dele à época do surgimento da paixão, ambos não ficaram juntos. Findos os estudos de Medicina, A., agora um médico, reencontrou a moça que, por sua vez, estava noiva de um forasteiro surgido sabe-se lá de onde, o qual havia convencido aquela sociedade de que era um homem rico. Pois bem, a moça, ainda que nutrindo sentimentos por A., disse-lhe que se casaria com o seu noivo, o forasteiro supostamente rico. Porém, após a consumação do casamento, não tardou para que o noivo, além de infiel, se revelasse também um golpista, detentor apenas de uma grande perfídia. Aqui você deve estar se perguntando, bom, nesse caso, a moça se separou do rapaz e ficou com o grande amor da sua vida, agora médico, advogado e deputado de reputação ilibada, não?

Penso que até poderia ter sido, caso estivéssemos falando de um romance, por exemplo, desses escritos para terem seus direitos comprados por uma grande produtora de cinema. Mas, não sendo este o caso e estando em jogo a vida real (que, como costumo dizer, não imita a arte que a recria, no mais das vezes, com toques mais sutis), a resposta é não. Repito: se a história de A. fosse o roteiro de um filme, é óbvio que um dia, ainda que fosse em seu leito de morte, ele ficaria com a mocinha. Porém, no asfalto duro e cinza da vida que é a real, ele, ao saber da separação do casal, disse, ela fez a escolha dela. Ponto. E nunca se casou. Segundo os relatos que ouvi, A. se relacionou com mulheres interessantes, inteligentes, bonitas e, a vida é mesmo irônica, muito ricas, mas nunca se comprometeu com nenhuma delas. Aqui, meu lado romântico (que por mais pisoteado que esteja de vez em quando ainda dá o ar da graça) fica imaginando se A. para sempre amou a moça do interior. Será? Considerando que ele está morto há muitos anos, jamais terei a oportunidade de lhe perguntar. De qualquer forma, fico pensando que, em seu lugar, eu teria agido da mesma maneira, ou seja, não teria ficado com a moça após a recusa (que, convenhamos, foram duas, uma pela falta de dinheiro e a outra pelo noivado com um pretenso bom partido), o que talvez não fizesse de mim uma pessoa mais feliz caso eu ainda a desejasse.

Alice Ayres ou Jane Jones? Quebrou não tem mais jeito, mesmo? Tenho pensado…

Itu, 9 de junho de 2023.

Nenhum comentário:

Postar um comentário