sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Nonsense

Era a Rita Lee ali, na primeira fila, vestindo um tailleur Chanel preto e branco e usando uns óculos que em nada se pareciam com ela, dizendo, com o ar mais sério do mundo, que iria ao cinema. Enquanto dizia isso para as duas pessoas que estavam sentadas ao seu lado, um homem e uma mulher, ela olhava para mim, que estava em pé a uma certa distância, na sua diagonal.

Será que esse sonho tem a ver com aquele disco onde ela canta Flagra? Aquele em cuja capa a Rita, com uma flor cor-de-rosa no cabelo, e o Roberto de Carvalho aparecem num fundo azul que simula um efeito meio água, meio mercúrio, meio celofane amassado? Passei sei lá quanto tempo da minha meninice olhando para o azul, o da capa e o dos olhos da Rita, e para aquela flor, e ouvindo aquele disco, que eu adorava e que levava comigo para cima e para baixo junto da minha vitrola portátil que, quando fechada, parecia uma malinha de espião de filme americano, só que branca e com uns furinhos em uma das extremidades. Rita, não sei se vou, mas estou doida de vontade de entrar no escurinho de um cinema, seja para ver se a Deborah Kerr que o Gregory Peck (na época eu não sacava a brincadeira ainda) ou seja lá o que for; qualquer coisa, na real, que me transporte, mesmo que só por um tempinho, para o mundo de antes.

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Fico atônita quando ouço alguém dizer que a vida está melhor agora, que o mundo pandêmico lhe é preferível ao mundo de antes, que tanto faz etc. Assombrada, só consigo pensar no estrago geral e no meu próprio desconforto. Quanto mais o tempo passa, mais eu penso que eu daria tudo, qualquer coisa para ter o mundo de antes e a minha vida de volta.

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Tenho andado pelas ruas noturnas da cidade onde eu nasci como quem pisa num sonho. Fico imaginando que por trás do concreto das edificações e por baixo das calçadas existe um outro universo, um outro tempo, separado do atual pela matéria bruta que constitui a cidade tal como ela se apresenta. Como se por trás de tudo houvesse uma outra realidade, como se o presente não fosse uma continuação do passado e sim um sonho cujo sentido eu não estou conseguindo decifrar.

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Sabe aquele filme A Vida Marinha com Steve Zissou? Eu pensava nele quando vi uma pessoa carregando suas coisas em dois grandes sacos plásticos. O homem atravessou a rua e caminhou na direção do coração da praça, onde jaz uma edificação que outrora foi uma escola. Quando o vi novamente, ele estava se preparando para passar a noite de Natal ali, encostado no muro da antiga escola, sobre a grama que recobre o chão e aparentemente sem nada que pudesse recobrir o seu coração.

O Sig estava no meu sonho. Já era o terceiro dia que estávamos naquela torre que ficava fora e ao mesmo tempo dentro do mar. Era uma espécie de apartamento muito pequeno e confuso, com paredes pintadas de amarelo e uma pequena área externa, colocado sobre a estrutura de uma plataforma marinha. Havia uma amiga conosco e no terceiro dia eu disse a ela que nós não poderíamos mais ficar ali pois o Sig estava saltando e pedindo para sair. Ele também havia feito xixi dentro do apartamento durante a noite, o que significava que ele não estava mais aguentando e, se ele não aguentava, nós também não aguentaríamos por muito mais tempo. Tínhamos que ir embora. Mas havia um motivo para estarmos ali. Havia? Lá fora era sempre noite, mesmo durante o dia, e as águas do mar eram agitadas e muito escuras. Havia botes cor de laranja espalhados no entorno e também outras pessoas, que apareciam quando nós saíamos. Sim, nós havíamos saído antes. Estávamos ali por algum motivo. Mas qual era o motivo? O Sig saltava no meio da sala e olhava para a porta e para mim. Acordei pensando nas palavras A Vida Marinha com Steve Zissou e sem saber o motivo pelo qual construímos uma realidade nonsense para viver.

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