domingo, 13 de dezembro de 2020

Três pequenos fragmentos

Bidimensional

Tenho sonhado com telas, todas as noites, com telas de tamanhos diferentes. No começo eu sei que estou a uma distância razoável, mas de repente elas começam a se mover na minha direção, numa diagonal crescente. São várias, completamente escuras, exceto pelo contorno verde luminoso. Saltam uma de dentro da outra e não param de crescer, de subir, de virem de encontro ao meu rosto. Quando chegam, elas me perpassam com o seu contorno e eu me sinto acuada o tempo todo, tomada por uma sensação da infância cuja descrição sempre me foi impossível. Algo físico, na garganta, no estômago, no tronco. Um arrepio que não arrepia, um formigamento, um gosto que não vem. M., eu estou me sentindo desesperadamente bidimensional.


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O não dito

Eu ligo e ele não atende. Ao mesmo tempo, ouço a sua voz e vejo o seu rosto do outro lado da linha. Tomo um susto. Entre outras palavras perdidas, ele diz o meu nome, sempre o meu nome, num tom que sempre me afligiu. O que ele diz é também sempre o mesmo, como faria um autômato programado para nunca dizer a palavra filha. O sonho acaba aí, na surpresa eterna do não dito.


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Sobremesa ou em Sampa, Narciso acha feio o que não é espelho
 
Eu sabia que mais cedo ou mais tarde você traria Freud para a conversa. Ao que eu poderia ter dito que mais cedo ou mais tarde eu também sabia que ele traria Deus, talvez um daqueles com tantos braços e pernas ou com o formato de uma serpente, para a conversa. Mas eu não disse. Agora porém me pergunto o que Freud teria a dizer a Deus durante a sobremesa. O mesmo que ele não disse ao Presidente Schreber, já que este também estava morto? Mas seria Deus um louco ou só mais um desesperado que se agarra ao paraíso perdido enquanto tenta fugir do inferno do desamparo?

De quem, afinal, é o reflexo que aparece na mesa quando Deus é trazido na bandeja?



P.S.: O título do último fragmento é claramente inspirado na música de Caetano Veloso e Giberto Gil, Sampa.

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