sábado, 20 de novembro de 2021

Lascas de palavras

Quando descobri que é sempre só você
Que me entende do início ao fim

Renato Russo em Índios


Hoje eu lembrei daquele seu sonho onde a gente dança, aquele em que você está a caminho de me ver mas não vem e no qual, mesmo assim, ou talvez por isso mesmo, a gente dança. Pensei então no quão extraordinária é essa onipotência lasciva do sonho, tão diametralmente oposta à impotência brochante da realidade. No sonho a gente é como um deus, a gente pode tudo, e a gente nunca morre. A gente pode tudo menos morrer. Como um deus. Você já morreu nos seus sonhos? Eu, nos meus, sou muito imortal.

Eu não te contei, mas tenho sonhado intensamente nos últimos dias. E sabe o que eu descobri? Que os meus sonhos, não só os de agora, mas os que eu sonho desde sempre, são todos como feiras livres, neles tem sempre muita gente. Irônico, você não acha? Fiquei pensando que talvez isso tenha a ver com as pessoas que moram dentro de mim e que eu desconfio serem muitas. Acho que são tantas que me dá até uma certa vertigem. Te dá vertigem pensar sobre a multidão que mora dentro de você? Eu sinto vertigem com tantas coisas... A morte, por exemplo, me dá muita vertigem. Nunca morri, mas só de pensar em morrer... Um dia desses ouvi alguém contando que havia lido num determinado livro uma coisa a respeito da morte dita por um garotinho. Era algo mais ou menos assim, que quando a gente morre, a gente deixa de ser a gente. Ou seja, eu, quando morro, deixo de ser eu, deixo de existir. Você, quando morre, deixa de ser você. O eu acaba, o você acaba. E aí a pessoa falava também daquela música do Gil onde ele diz que não tem medo da morte, mas que ele tem medo de morrer. Eu tenho medo de morrer, igual ao Gil, igual a muita gente. Você tem medo de morrer?

Mas não é só a morte que me dá vertigem, a vida também, acredita? A vida me dá uma puta vertigem. Quando eu estava viva e, apesar dos parafusos, ainda me sentindo quebrada ali na maca da fisioterapeuta, ela com a mão no meu pé, vi o preto da vertigem total chegar. Você tem claustrofobia? Não, não sei, não tinha, mas agora eu não sei. Agora eu sei que eu tenho náuseas e um medo enorme de nunca mais conseguir dormir. Logo eu, que dormia como uma pedra, logo eu que, quando ficava acordada de madrugada, achava o ritmo da noite o suprassumo da magia. Agora eu tenho horror do anoitecer e uma vontade insuportável de fugir da madrugada. A noite, quando cai, tingindo tudo de sombra, é a chave que me tranca num quarto onde me falta o ar. Eu quero acender o sol mas não consigo porque fora do sonho eu não sou deus e para ser deus eu tenho que dormir. Você quer que eu deixe a porta aberta? Quero, por favor.

Mas o que eu queria mesmo era poder sair correndo dali ou de qualquer outro lugar porque o meu real desejo era andar bem rápido, como eu sempre fiz, andar quase correndo, andar muito até ficar exausta e conseguir dormir. O que eu queria também era saber fazer o que me diziam que eu podia fazer com todo aquele tempo que passava a conta gotas. A ansiedade é como uma névoa que desce a qualquer momento, foi o que a mulher que me atendeu na farmácia de manipulação disse. Aí eu pensei, uau, é isso, ela sabe. Ela certamente sabia que de repente a tal névoa aparecia, pesada, cobrindo tudo com uma camada viscosa, abafando os sons, provocando náuseas e trazendo uma série bem descontrolada de pensamentos vertiginosos. Durante o dia eu olhava para o espelho e tentava descobrir ali os sinais da loucura. Porque para mim não havia dúvidas, era óbvio que eu estava enlouquecendo. Durante a madrugada, deitada na cama ou no sofá, eu esperava o momento em que eu deixaria de ser eu, o início da loucura, da alienação. E então eu pensava sem parar que a loucura seria uma prisão, que enlouquecer seria passar para um lugar onde ninguém, nem você, me entenderia, e ali ficar, sem conseguir encontrar a saída. Ficar louca era deixar de ser eu, era morrer. Você está com medo de morrer, a analista me disse, e ela invariavelmente acerta.

A morte, como a loucura, é uma grande interrupção. Logo que eu saí da casa dos meus pais, aos dezoito anos, eu achava que poderia enlouquecer a qualquer momento. Eu sempre tive medo de morrer. Lembra daquele filme, Garota Interrompida? Sabe qual é o título dele em italiano? Lascas de loucura. Fiquei sabendo disso ao ler um livro de uma escritora chamada Claudia Durastanti. Lascas de loucura, dito assim, não parece tão ruim, não é? Acho que todos nós fomos feitos em lascas nos últimos tempos, todos fomos interrompidos. Isso eu te contei, que eu ainda não sei de tudo que aconteceu comigo nos últimos meses, que eu ainda estou pensando nisso. Ainda estou juntando as lascas, entende? Como essas lascas de palavras que unem e organizam as coisas que eu tenho para te contar.

Fui à exposição da Clarice, você já sabe. A Clarice juntou as lascas como ninguém mas você acredita que eu tenho medo dela? Sim, eu tenho medo da humanidade divina que é a Clarice, das lascas que ela produziu. Medo, assombro, desejo, admiração, susto, fascinação. Eu tenho tudo isso por ela, e eu não queria ser ela. Tem um livro de entrevistas com a Hilda chamado Fico besta quando me entendem e a Clarice para mim é isso, ela é a grande vertigem do entendimento. Do início ao fim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário