domingo, 3 de abril de 2022

Eu agora me afogo

Eu não me rasgo mais, digo num tom meio alucinado enquanto toco com força o centro do peito, arrastando os dedos pela superfície da pele que recobre o osso esterno, como se com isso eu pudesse voltar a me abrir. Eu agora sou uma criatura que mede esforços, sigo dizendo, e por essa razão fico me perguntando aonde é que eu fui parar. Onde está a pessoa que se rasgava? Cadê aquela intensidade toda? Sei que numa mesma vida a gente nasce e morre várias vezes, mas essa sucessão eterna de perdas cansa. É como a fantasia. Quando a gente acha que encontrou aquela que fez o risco no disco, a que faz um pedaço da música ficar repetindo sem parar, não demora muito a surgir outra, outro risco, um arranhão maior ou menor que, para além da ironia que fatalmente me faz rir, tem também me deixado um pouco puta. Talvez por eu ser ansiosa. Quando quebrei o pé o médico disse, você é muito ansiosa. Fiquei indignada, blasfemei primeiro em silêncio, depois no carro, na sala, na cozinha, no quarto. E ainda que ele tenha feito um trabalho de engenharia ortopédica magnífico no meu pé, encaixando de forma magistral os três parafusos que aparecem como alienígenas na radiografia, e que eu tenha passado a indicá-lo para a cidade inteira, quem, afinal, pensei, era ele para dizer que eu sou uma pessoa ansiosa?

Só que aí, um ano depois, me vi obrigada (só uma toupeira seguiria negando) a admitir que eu sou terrível e implacavelmente ansiosa, que os meus pensamentos constantemente entram acelerados numa linha reta que, como já nos ensinou a geometria, é infinita, e que a verdade é que não fossem os anos de homeopatia hardcore (sim, isso existe), yoga, terapia, análise, discos, filmes, séries, viagens, shows, atividades físicas mais ou menos exaustivas (estas funcionam melhor), a minha mãe pacientemente me ouvindo ao telefone e os amigos também (eu ligo para as pessoas e vou deixar aqui registrado, se for urgente, ligue, se não for, ligue também, não suporto mais o whatsapp e penso que temos que aproveitar recursos tão incrivelmente high tech como a nossa própria voz e a capacidade de interagirmos simultaneamente uns com os outros), chocolate, álcool, a imprescindível companhia de cães, os livros e outras tantas coisas que agora estou com preguiça de escarafunchar em mim mesma e o meu potencial para ser uma paciente psiquiátrica contumaz seria maior do que já é.

Sou tão ansiosa que não consigo viver sem pensar em morrer. Já falei sobre isso aqui, em outros textos. Aliás, fico fascinada quando alguém me diz que não pensa sobre a morte pois eu nunca tive essa experiência. Nunca. Deve ser sublime, algo como passar a vida com a sensação eterna do arrebatamento provocado por algo que nos capturou num determinado instante, um quadro, uma música, um cheiro etc. E mesmo sabendo que a morte é o que dá sentido à vida, que falar e pensar sobre a morte é pensar e falar sobre a vida, sinto uma inveja profunda dessas criaturas fascinantes que acabei de citar, as que não pensam sobre a morte, e que imagino serem menos ansiosas.

A propósito, um bom lugar para se falar sobre a morte, pelo menos para mim, é a análise, momento da semana pelo qual eu obviamente nutro uma certa ansiedade, a ponto de nunca desmarcar. Sou absolutamente dependente da minha analista, cuja voz antes morava na minha cabeça como a voz dela e que agora fala por ela mas com a minha voz. Curiosidades inúteis do meu processo analítico à parte, num ímpeto de ansiedade, mando uma mensagem para a analista a fim de anunciar que na próxima sessão iríamos discutir o Pereira. No dia do encontro, ligo direto, sem antes mandar a famigerada pergunta pelo whatsapp, posso ligar. Começo falando de outro livro, um de crônicas de viagem. Sigo dizendo que o livro me fez pensar em algo que eu já vinha pensando, que seria a hipótese de que talvez o meu último nome, aquele que quase não uso, teria a ver com a minha paixão por viagens, já que o nome me lembra  o verbo viajar no gerúndio. Um nome que é o do pai e que, repito, eu praticamente não uso. Mudo para o Pereira. Fraco mas depois forte, um tanto desprezível no início mas completamente redimido no final. Também me fez lembrar o nome do pai, embora para este não tenha havido redenção, ainda. Ainda denota uma esperança que eu não tenho mais. Torno a dizer que não me rasgo mais e a analista, numa manobra ousada, lança mão de uma pergunta que me faz atravessar a dimensão do céu, do mar e da areia que me cercam para alcançar o mesmo céu, o mesmo mar e a mesma areia, só que de um outro lugar. Demoro o tempo da travessia para responder e, quando o faço, é num tom calmo e, o que não é do meu feitio, doce. A resposta é temporal, recentemente.

Cortamos então da praia para a praça, num outro tempo, ainda mais recente. Inicio acelerada, falando de esquecimentos de objetos, de noites com poucas horas de sono, da névoa que me envolve. Outro corte, outra praça, e falo da morte e do ressentimento de não poder ter me despedido. Em vida. Termino com documentário do Nureyev, ao fim do qual tenho vontade de estender a mão e tocar o bailarino, o que me faz lembrar de dizer que saber que nunca mais será possível falar com as pessoas que morreram me dá a sensação de afogamento. Falar mais do que tocar, embora eu tenha o ímpeto de estender a mão, talvez menos para salvá-los do que para ser salva. Digo que sei exatamente quando isso começou e que antes disso eu não só me rasgava mais como pensava bem menos sobre a morte. Foi numa cama de hotel, numa noite gelada, suando sob uma crosta de cobertores, que me senti afogar pela primeira vez. Ali havia uma separação posta, de forma ainda quase invisível, na linha do horizonte. Depois daquela viagem, passei a me afogar quase diariamente trancada no banheiro. Eu chorava até sentir dor, até não ter mais corpo para afogar. Como a fala não alcançava nem o  interlocutor nem a salvação, eu chorava. Até que numa certa manhã, num susto, escrevi. E foi assim que uma nova história tomou corpo, essa que estou escrevendo agora.

Rosa Montero fala que, quando conheceu o seu marido, teve um receio enorme de perder a liberdade e a independência que havia conquistado (a duras penas, como é a regra no nosso caso, o das mulheres). Pois bem, é exatamente isso que eu sinto hoje, medo de perder essa história que vem sendo construída a algumas duras penas nos últimos anos e que é o medo do abandono de mim mesma para alguém que me toca nesse lugar do não reconhecimento. Mas tem outro, talvez mais entranhado, que é o medo de quem pode ir, a qualquer momento, sem aviso, sem despedida, marcando os dias de abandono que se seguem não com a voz, mas com o silêncio que só se ouve debaixo d´água.


P.S.: A expressão "dias de abandono" utilizada no último parágrafo é uma clara alusão ao livro de Elena Ferrante, de mesmo nome.

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