domingo, 21 de agosto de 2022

Eudaimonia

De uns tempos pra cá tenho feito as minhas sessões de análise andando. Deitada no divã e caminhando pelos parques, pelas ruas, eventualmente por alguma praia, percebo, à medida que as semanas avançam, que sinto um prazer cada vez mais peculiar ao ver o entorno passando enquanto sigo tão invisível quanto a Sheila de a Caverna do Dragão quando veste o capuz da sua capa mágica. Era ela que eu encarnava nas brincadeiras com as outras crianças, quando cada uma de nós se fazia passar por um dos personagens do desenho animado enquanto tentava encontrar a saída do universo paralelo que era a garagem de alguma das casas da vizinhança.

Adulta, ando vestindo a capa da invisibilidade que a análise me propõe e tenho saído por aí sem ligar para o que os outros vão pensar do meu caminhar. Com o olhar focado no caminho que logo à frente se estreita em árvores mais altas, digo que, mesmo sabendo que não é mágica, acho fascinante, quase sobrenatural, como tudo é palavra, como tudo acontece a partir da palavra, como tudo o que somos de verdade está nas palavras que erramos, que esquecemos, que trocamos, que criamos, que sonhamos, que são encarnadas nos objetos perdidos ou esquecidos, nos acidentes que classificamos como banais, a exemplo de um dedo que se corta ao fatiar um teco de pão ou de uma vértebra ou calcanhar quebrados dentro de casa. Veja, sigo dizendo, mesmo sabendo como acontece, ainda assim fico muito admirada com isso, com o fato de ser assim, de ter essa cara de truque, de brincadeira, de ilusão, e mais estupefata ainda com a constatação de que só as palavras salvam, ou melhor, de que só as palavras podem me salvar. Mas será que é assim pra todo mundo? Será que as palavras são, para todo mundo, a única saída?

Deixo ressoar, como sugere a analista, e na sessão seguinte inicio dizendo que sim, que acho que é assim para todo mundo, que não vejo outra saída, que mesmo que uma pessoa não tenha um amplo cabedal simbólico, pouco importa, é só a palavra o que nos resta, o que nos forma, o que nos contorna, o que faz o sujeito aflorar em nós. Fora da palavra, fora da linguagem, é o Sig e a Amora que, ao se verem refletidos num espelho, acreditam que ali está outro cachorro, que não eles mesmos. É só pela palavra que o humano que se vê refletido no espelho vira humanidade em nós. E então falo de novo sobre o assombro, sobre a admiração, e busco uma palavra, uma palavra grega. A que me vem é eudaimonia, que descarto, achando que não é bem isso que quero dizer. Ando em torno da praça e das palavras que se alinham em círculos dentro da minha cabeça até escolher uma delas, maravilhamento.

Fico maravilhada com o que as palavras podem ou não fazer, com o que colocam ou não em movimento. Talvez por isso mesmo eu esteja, atualmente, andando com a analista. São tantas palavras ressoando em mim que a impossibilidade de colocá-las imediatamente para fora me obriga a me manter em movimento, pois parada corro o risco de colidir com elas.

Mas, e se eu tivesse todo o tempo do mundo para colocar tudo para fora, será que isso aconteceria? Penso que não, que por não termos palavras para tudo e, por outro lado, serem incontáveis as possibilidades e as combinações lógicas, nunca será possível colocar todas as palavras e todos os pensamentos para fora, sendo essa justamente a graça da coisa, ou seja, o fato de, por dentro, podermos ser quase infinitos na nossa imaginação e nas nossas associações e, ao mesmo tempo, termos de lidar, usando aquilo que temos, com a nossa angústia de não poder ter tudo, nem quando se trata de palavras.

Nesse sentido, acho que as palavras são como os encontros que temos pela vida afora. Há os que acontecem e os que não acontecem, por impossibilidades de naturezas diversas. Por exemplo, é muito improvável que você, leitxr brasileirx, tenha um grande encontro de amor (romântico ou de amizade) com alguém que mora na Letônia. É possível? É claro que é, mas não é o mais provável. E no fim, penso que os encontros que achamos que certamente acontecerão ao longo das nossas vidas estão apenas na nossa imaginação, no nosso querer desesperado de poder ter tudo e de achar, de uma forma ou de outra, que somos imortais.

Aos trinta anos eu pensava assim e nem me dava conta disso. Eu achava que a vida me apresentaria infinitas possibilidades de encontros e, assim sendo, talvez não desse o devido valor para aqueles que então me aconteciam. Passados os anos, hoje entendo que um encontro, assim como a oportunidade de escrever um bom texto, não deve ser desprezado. Em seu livro Grande Magia: Vida criativa sem medo, Elizabeth Gilbert diz que as ideias para um texto (um conto, um ensaio, um livro) aparecem de forma meio mágica e que, se não as capturamos, elas vão para outro lugar. Com os encontros acontece algo parecido: ao não lhes darmos a devida atenção, eles simplesmente nos escapam, deixando-nos mais pobres. Assim como ocorre com as palavras, são os encontros que nos enriquecem e que trazem consigo a possibilidade de nos desembaraçarmos um pouco de nós mesmos. E o que fazer quando um encontro acontece para, logo depois, desacontecer? Há, aliás, o que fazer?

Penso que essa é uma boa pergunta, para a qual, como de hábito, eu não tenho a resposta. Mas, como as palavras, ao ressoar, criam mundos - quem leu o Gênesis deve ter percebido que é falando, ou seja, proferindo palavras, que deus cria a sua casa de bonecas, ou seja, o mundo que está lá na Bíblia -, as minhas, embora eu seja apenas e felizmente só mais uma mortal como tantas outras que habitam o planeta, às vezes também ecoam e fazem algo se movimentar. De maneira que o eco de uma história cujas evidências apontavam todas no mínimo para uma grande paixão retorna, mais de quatro anos depois, na forma de, oi, tudo bem por aí, o que, obviamente, joga a minha cabecinha de histérica contumaz com altos traços de neurótica obsessiva em loopings indagativos: e se ele tivesse me dito o que estava acontecendo, dentro e fora dele, alguma coisa teria sido diferente? E se um dia eu o visse pessoalmente novamente, como seria? Será que eu seria de novo capturada por tudo nele que me deixava completamente fora de mim? O que era aquela coisa que exalava da nossa presença e que era reconhecida por estranhos mesmo quando não admitíamos abertamente para nós mesmos, não com palavras, que estávamos apaixonados um pelo outro? Para a primeira pergunta tudo o que eu sei é que não sei lidar com a indiferença, o que é uma questão particularíssima que exige um texto mais longo, a exemplo de um livro. Deixemos, portanto, por ora, essa questão em estado de latência. Com relação às perguntas restantes, bom, são elas o gancho perfeito para eu poder falar aqui sobre um tema da minha preferência, que é justamente a paixão.

Sim, adoro me apaixonar e adoro pensar sobre a paixão. Eu sei, querida analista - por quem sou declaradamente muito apaixonada -, que o objeto é perdido e que isso de sair por aí se apaixonando tem a ver com essa busca impossível, mas, caramba, é tão gostosinho estar apaixonada, é tão bom curtir esse barato de estar fora de mim sem ter que apelar para qualquer tipo de substância... Porque a paixão é aquele trequinho que dá aquela alterada básica nos sentidos. Estar apaixonado é estar fora de si, como já nos ensinou Freud, é como estar louco, como disse Lacan, é como ter um fusível queimado, como cantou a Bjork. You blow a fuse, ela diz, e eu acho maravilhosa a sacada. A paixão é uma espécie de curto-circuito do eu, que é esse inferno que nos assola o tempo todo, é uma atenuante do eu. Talvez seja algo um tanto quanto exagerado, muito som para quem não lida bem com a vibração da vida, mas é justamente por colocar o eu numa outra direção, para fora, por movimentá-lo, que vejo a paixão com bons olhos. Como sempre me disse a analista, movimento é vida, e o que seria a paixão, senão movimento? Então a paixão tem explicação? Freud explica a paixão?

Sim e não. Ao fim e ao cabo ninguém explica a paixão e cada um se apaixona por algo tão quase misteriosamente significante para si mesmo e que pode ser qualquer coisa, o formato de um nariz, o contorno de um pescoço, um tom de voz, um modo específico de olhar, a cor dos olhos, um jeito de dizer uma coisa qualquer, a sensação do toque, os circuitos inconscientes que são ativados por um beijo assim ou assado... Retomemos a Fleabag quando transa com o padre gato (estou me repetindo, mas não tem problema, pois a cena é exemplar): completamente tomada pela situação, ela finalmente bate na câmera na hora da transa, deixando o espectador no vácuo. Detalhe, ela é o próprio espectador, é consigo mesma que ela fala o tempo todo quando olha para a câmera. Ou seja, ela finalmente desliga o maldito eu. Embora eu tenha me apaixonado diversas vezes ao longo da vida e ido das paixonites às grandes paixões, confesso que só duas delas me fizeram desligar a câmera, duas das mais improváveis, o que me fez perceber que os fios da fantasia que recobre a paixão estão quase todos, ou talvez todos, instalados no inconsciente.

Agora, tem aquela outra parte também, a da admiração, que para mim fica ali no campo da discussão de quem veio primeiro, se o ovo ou a galinha. Veja, embora seja possível apaixonar-se por alguém por quem não se tem ainda tanta admiração e então passar a admirar essa criatura como se ela fosse o ser mais incrível e, portanto, mais especial, que já pisou o chão deste planeta, também é possível apaixonar-se por alguém justamente por admirá-lo. O que, contudo, talvez prescinda de qualquer discussão seja o fato de que, de uma forma ou de outra, paixão alguma dura sem que haja admiração. Mesmo porque paixão, deixemos apenas registrado aqui, é pura idealização.

De qualquer forma, tenho para mim que se apaixonar é também se rasgar. Você se rasga e se atira na direção do outro. Você se abre e, abrindo-se, fica vulnerável. Você vai e o seu corpo vai junto. E se não houver acolhimento por parte do outro, você volta e se costura. E tudo bem, pois, como já cantou o Roberto, se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi (recomendo a versão da Marina para a música, que é simplesmente demais). Super clichê, não é? Não, não é. É isso mesmo, o importante é viver as emoções e eu acho extremamente entediante quem não o faz, assim como tenho achado a escrita masculina, no geral, chata. Dos livros que inconscientemente separo para ler, mais ou menos noventa e oito por cento são escritos por mulheres. Sim, sei que feminino e masculino não tem a ver com gênero mas, sinceramente, alguém aí consegue imaginar um homem escrevendo como a Clarice Lispector, com todo aquele corpo, com toda aquela alma, com aquele rasgo de palavras profundas e sedutoras? Já a escrita masculina, em muitos e muitos casos, tão econômica, tão obsessiva, tão assombrosamente decepcionante...

Você iniciou falando do assombro e agora volta a falar sobre ele, a analista observa, e eu penso que você está assombrada com os homens. Sim, estou, mas num mau sentido, pois que não é como um maravilhamento e sim como uma grande decepção. Eu não entendo mais os homens. Essa economia toda, essa avareza generalizada, essa pequenez do corpo, da alma, a ausência e o medo das palavras, a tentativa obsessiva de manter o controle a partir do cálculo de uma conta que, a meu ver, não fecha, pois qual seria o ganho de se viver enredado pela pulsão de morte, essa coisa insuportável de entregar e reter, reter e entregar, como uma criança em plena fase anal, e tantas e tantas outras inibições. É de fato assombroso. Além disso, me diz, como é que a histérica aqui, a que se rasga, vai conseguir lidar com homens que parecem incapazes de fazer qualquer furo, mínimo que seja, no próprio narcisismo? É da ordem do impossível, tenho concluído. E tem mais, os homens que conheci até uma certa altura da vida eram muito diferentes. Eu não sei quem mudou, se fui eu ou se foram eles. Eu, sem dúvida, mas eles estão mais achatados, parecendo criaturas moldadas em duas dimensões apenas, estão mais parciais que nunca, enquanto nós, mulheres, muitas de nós, estamos cada vez mais rasgadas para a vida, descobrindo as inúmeras potencialidades que nos foram negadas por tanto tempo, e querendo mais. Para o que está acontecendo comigo em relação aos homens eu ainda não tenho as palavras. Acho que ainda estou na fase do choque, do trauma, do evento para o qual não se tem palavras. Mas elas estão vindo, como você pode perceber. Agora, sinceramente, você acha que eles estão mais felizes assim? E, numa das raras vezes em que há uma resposta, ela diz, eu não sei, não sei mesmo.

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Apesar de todo e de qualquer desencontro e de qualquer inferno que a vida amorosa tenha me apresentado, eu me peguei, fechando a janela, feliz. Muito feliz. O inconsciente, é realmente verdade, nunca erra a palavra.

2 comentários:

  1. Realmente. A paixão é inexplicável. Ininteligível podemos dizer.
    Se puder assistir o filme A tabacaria, eu recomendo.
    Fala sobre Freud e está disponível no YouTube para alugar.

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