quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Moral da história: eu não só sou conservadora como adoro fracassos

A minha cabeça é como água agitada e turva de mar e há dias nos quais desejo loucamente ter nascido mais plana e menos revolta, menos capaz de tantas conexões e de tanto barulho dentro do silêncio que deveria ser o interior da minha caixa craniana, o qual não raro é tomado por uma espécie de ruído branco ou por aquele som que se ouve quando se tem os ouvidos imersos na água e que, ao fim e ao cabo, no meu caso, talvez não seja outra coisa além do trabalho das cracas aderindo às paredes do meu crânio.

Cracas que vão se acumulando e crescendo desordenadamente, tomando conta de superfícies rochosas que não são tão duras assim. Água mole em pedra dura... E eu estou tão exausta que não consigo me livrar delas. Há um muro, um anteparo de realidade demasiado concreto me impedindo de alcançá-las. Numa manhã dessas acordei e, mal abri os olhos, vi a realidade estampada no lençol. Tomei um susto. Então a vida é isso? Mas e se agora eu quiser que seja outra coisa?

Eu me comparo mais uma vez à protagonista de A Pior Pessoa do Mundo, aquela que deseja tanto, e a analista me diz que não, que não sou como a Julie, e então eu choro. Choro e no fundo não acredito. E tudo o que eu quero, atualmente, é ficar em posição fetal até o meu próximo aniversário chegar, até o dia em que todos os santos são comemorados amanhecer. Quero que um adulto de verdade assuma o controle e me deixe ficar quieta com uma pilha de livros ao meu lado e nada mais. Quero furar as ondas que se formam sem descanso dentro da minha cabeça, passar da arrebentação, sentir o meu corpo voltando a ser leve na água salgada. Andei convocando o meu Buda mas ele ainda não compareceu. 

Meu quadril dói, meus ombros, as escápulas, o pescoço, os meus braços e, no lugar do peito, tem um pedaço de concreto. Cimentaram tudo e a carne vermelha virou cinzas. Eu me olho de perfil no espelho e penso, minha bunda caiu. Viro de frente e o tríceps, que é o termômetro da coisa toda, está tão caído quanto a bunda. Certa vez perguntei a um professor de musculação se aquilo que eu tinha sobrando ali nos braços perto das axilas era gordura. Surpreso, ele disse que não, que era pele, e na sequência me perguntou se por acaso eu andava vomitando. Bulimia nunca foi a minha praia mas não seria de todo incorreto afirmar que uma certa dismorfia corporal sempre me acompanhou.

Para fugir do meu corpo, vou para a tela plana e termino a última temporada de Girls. Adam, o namorado de Hanna, é tão esquisitão quanto o esquisitão que eu namorei no terceiro colegial (não sei se nós de fato fizemos o funeral de um hamster chamado Ernesto ou se estou apenas imaginando coisas) e que depois foi e voltou da minha vida até o dia em que declinei, intimamente, do convite para a comemoração da defesa da tese de doutorado dele. Nós dividíamos filmes, livros e músicas e até hoje guardo uma coletânea tripla dos Rolling Stones que ele comprou para mim quando um amigo próximo resolveu vender toda a sua coleção de CDs. Sempre gostei mais dos Stones do que dos Beatles e ele, cuja preferência não obedecia a essa mesma ordem, sabia disso. Tomei o ato como uma declaração de amor. Também guardo um livro que ele me deu que traz uma dedicatória, do pequeno amigo M. Foi essa história cheia de razões, incluindo aquelas cantadas por João Gilberto, que me levou, poucos anos mais tarde, a decidir prestar o vestibular para Filosofia (e também a sair correndo do sofá onde eu e M., ambos comprometidos com outras pessoas, fingíamos interesse inocente num filme que retratava a mais pura essência dos anos 1980 até começarmos a nos pegar loucamente, numa noite que mais parecia carregar o dilúvio nas suas nuvens, e que me carregou tanto para o arrependimento da traição quanto para o de não tê-la perpetrado a contento, mais para este do que para aquele).

Além disso, Girls também me fez sentir saudades de São Paulo. Saudades de andar pelas ruas, de protagonizar dramas domésticos e de ter as minhas amigas comigo. Mas aí me ocorreu que as ruas de São Paulo não são as de Nova Iorque e que as nossas vidas, a minha e as das minhas amigas, são hoje a lembrança daquilo que um dia nós fomos combinada com aquilo que entre nós não sabemos mais o que é. Curiosamente, Hannah e eu nos mudamos para o interior.

São Paulo, repito, não é Nova Iorque e com esta flerto desde os meus dezessete anos. Enquanto alternava a minha paixão pelo esquisitão do terceiro colegial com um caso com o professor de História, um flerte com a irmã gata e mais velha de um colega de classe e um namoro com um rapaz que havia acabado de abandonar o curso de História e voltado a viver na mesma cidade que eu (e que, a uma certa altura do campeonato, para me dissuadir de terminar o relacionamento, resolveu me presentear com um filhote de Husky Siberiano), eu pensava que, caso não entrasse em alguma faculdade naquele mesmo ano, iria me mudar para Nova Iorque. Feliz ou infelizmente, jamais saberei, passei no vestibular e troquei a fantasia de Nova Iorque pela concretude de São Paulo. E o resumo da ópera aqui é o seguinte: mesmo levando uma vida emocionalmente confusa e promíscua, aos dezessete anos eu jamais pensei em levar qualquer relacionamento a sério. Eu pensava, é só por agora, e não quis sequer ver a cara do Husky, conversar com o professor de História sobre a carta de amor endereçada a mim que a esposa dele havia encontrado "por acaso" ou contestar a carta do esquisitão na qual ele estabelecia o término do nosso namoro com base nas nossas idas para cidades diferentes mas, sobretudo, com base na opinião do pai dele, que havia profetizado que esse era o caminho lógico a ser seguido por nós dois. Senti uma raiva imensa desse homem e uma vontade louca de chacoalhar M., mas mantive a compostura e a firmeza no meu propósito de uma vida universitária que me levasse para longe da casa dos meus pais, mais precisamente para longe do meu pai, ainda que o meu coração estivesse partido em alguns pedaços. 

E por que Nova Iorque? Não sei, não faço a mínima ideia. Talvez fosse, desde então, uma questão estética, mais precisamente a que se vê em filmes de diretores como Woody Allen e que, naquela época, já viviam rodopiando na minha cabeça. Aliás, Hannah, ou melhor dizendo, Lena Dunham, é o meu novo Woody Allen. Definitivamente, não é sempre que se veem cenas como a do final do episódio em que Shoshanna está no Japão e segue se distanciando da câmera enquanto caminha, arrasada, por uma rua, ao som de Life On Mars, ou um giro narrativo como o que Lena constrói no episódio em que Hannah visita o escritor famoso acusado de abuso sexual. Resolvo então ler o livro que ela escreveu, Não sou uma dessas: uma garota conta tudo o que "aprendeu", e encontro, logo nas primeiras páginas, a seguinte frase: "Não há nada mais corajoso para mim do que uma pessoa anunciar que sua história merece ser contada, sobretudo se essa pessoa é uma mulher", que vai exatamente na mesma direção de outra que, não raro, surge espontaneamente na minha cabeça: para que serviria a vida, senão para escrevê-la? Mas afinal, qual é a vida que eu quero escrever? Em qual mundo eu quero viver? Dá para escolher?

A analista me diz que parece haver uma dificuldade de adequação, uma resistência aos novos tempos, ao mundo como ele hoje se apresenta. Será que não tem um pouco disso, ela pergunta, ao que eu me vejo obrigada a responder, como assim um pouco, não é que tem um pouco disso, isso é só o que tem. Quem, por exemplo, eu seria em meio aos personagens de Girls? (Eu deveria de fato fazer essa pergunta a ela antes de respondê-la aqui mas, vá lá, de nada adiantaria pois, além de não responder, ela me devolveria a pergunta.) Ainda que com algumas pitadas de Jessa, é claro que eu seria o Ray. Numa série chamada Girls, com quatro mulheres em cena, eu obviamente seria o cara rabugento e antiquado que está sempre lendo.

Um homem, antes mesmo de me conhecer pessoalmente, me disse exatamente isso, você é conservadora. Quando finalmente nos encontramos, ele disse novamente, e não se explicou. Simplesmente agiu como um cavalheiro do início ao fim do nosso almoço, ao longo do qual, aliás, tentou, com êxito, me agradar. Eu o olhava e pensava em como a neurose obsessiva pode eventualmente ser encantadora, até o momento em que ele disse, como quem tira uma máscara, eu sou todo bagunçado. Pronto. Foi aí que eu pensei, pode vir que eu mato a sua neurose no peito, dou a minha para você, faço qualquer negócio. Uma frase, acompanhada de um movimento do tronco contra o encosto da cadeira e de um dar de ombros sutil, os olhos fixos nos meus e um tom de quem não tem outro remédio senão a própria bagunça, e ele me fisgou. Moral da história: eu não só sou conservadora como adoro fracassos, pois mesmo que esse encontro não tenha dado em nada, ele pode muito bem vir a ser o início de um romance.

Há pouco tempo, instada a escrever sobre um tema em psicanálise, escolhi o fracasso, ou melhor dizendo, escolhi o Projeto para uma psicologia (1950/1895), que Freud abandonou sem terminar, julgando-o um fracasso. Aliás, não por acaso, das coisas mais enternecedoras a respeito de Freud são justamente as suas confissões de fracassos. Eu o leio e, ao fim das histórias, dos casos fracassados, só o que tenho vontade de fazer é abraçá-lo. Assim como fiz com o cavalheiro todo bagunçado.

3 comentários:


  1. Mais um texto maravilhoso.
    Só fico triste qdo termina.
    Escreve não um, mas muitos livros.
    Não importa nada, só escreva.

    ResponderExcluir
  2. Em julho, deste ano, caminhei pela Avenida Paulista tendo vc ao meu lado.
    Conversei com vc, sorri também.
    Sentados no Trianon fiquei em silêncio.
    Um silêncio calmo. Vc se levantou. Partiu.
    O silêncio foi se fazendo sólido, um monumento.Tomou conta de mim. Me abraçou e soprou ao meu ouvido o trecho da música da Legião: "Uma menina me ensinou, quase tudo que eu sei ..."
    Gratidão, Cá!

    ResponderExcluir