quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Desler Ricardo ou comentários de leitora

"Six months isn´t so long
Not everybody gets corrupted
You have to have a little faith in people."

Tracy para Isaac em Manhattan, última cena.


"Eis-nos, pois, acuados contra o muro, contra o muro da linguagem. Estamos em nosso lugar, isto é, do mesmo lado que o paciente, e é nesse muro, que é o mesmo para ele e para nós, que tentaremos responder ao eco de sua fala."


Jacques Lacan, Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, em Escritos



"Que outra coisa a gente aprende em uma análise a não ser a amar?"


Ricardo Goldenberg, Uma carta de amor, em Do amor louco e outros amores



Do amor louco e outros amores. Só o título já seria o suficiente para que eu o desejasse mas o que bateu mesmo foi uma história de amor. Levantei o livro da bancada e, ao abri-lo aleatoriamente, dei de cara com BLADE RUNNER. O nome do filme e uma frase de Deckard escritos. Sem pensar e sem levantar os olhos da página, disse ao vendedor, vou levar este também. E o levo, mesmo depois de, há semanas, lido.

Dos textos que o compõe, Uma carta de amor é daqueles que eu sei que vão me acompanhar por ainda muito tempo, em leituras e desleituras periódicas. A seu respeito, Ricardo escreve, duas páginas depois da menção a Blade Runner, que para alguns amigos a quem o deu para ler disse "que o tinha escrito antes com as tripas que com o teclado" (p. 13). Pois bem, eu o li antes com as tripas que com a razão. Sobre Uma carta de amor chorei algumas entranhas.


Ouvi de P. que quem procura análise quer ser amado. Quer (e agora sou eu porém não sem as referências dela a Bartleby) que alguém se sente ao seu lado e olhe para o mesmo muro, seja ele qual for, numa aposta de conexão. Assim talvez como Deckard quando senta ao lado de Rachael ao piano, desencadeando o movimento da possibilidade impossível do amor (entre androide e caçador de androide), numa cena que de tão simbólica é quase palpável (e também dessas que alguém carrega por décadas e que relê de tempos em tempos).


Partindo do pressuposto de que a análise é, entre outras coisas, uma aposta na conexão gerada pelo amor (ou na construção do amor que se ergue sobre as fundações de uma possível conexão), venho pensando que as mágicas acontecidas no processo analítico, tão surpreendentes, nada mais são que a expressão dessa conexão que, há mais de cem anos exposta pela descoberta que nos martelou com o veredicto da impossibilidade do controle absoluto, pode vir a quebrar o clichê mortífero da repetição infinita. Como se a faixa que se acreditava riscada num disco passasse, com um sopro, a tocar sem que a agulha voltasse a emperrar nos montinhos de poeira que até então vinham sendo confundidos com um risco irremediável.


Impossibilidade de controle que, quando se desvela, parece, não por uma feliz coincidência, descobrir também a possibilidade do amor que, uma vez edificado entre analista e analisando, permite que este olhe pelas janelas do edifício construído por ambos de uma altura que, se por um lado é vertiginosa, por outro é aclaradora. Dentro e fora do setting analítico, percebe-se que o amor só é amor quando confessa e tolera fragilidades e fracassos. Quando não, é outra coisa e a maior das vertigens, acredito, pode advir da descoberta de se ver, num supetão, sem nunca ter amado, e sim de ter feito, sem saber mas sempre sabendo, essa outra coisa, esse borrão familiar que pode cegar uma vida inteira sem que esta se dê conta das fantasias que a recobrem.


E com relação às minhas fragilidades, femininas, as quais ando me permitindo confessar e viver, Todas as noites mais uma, De volta ao jardim (A propósito de O Cântico dos Cânticos) e O ameaçado, outros textos que compõem o livro de Ricardo Goldenberg, fizeram com que eu virasse um pouco a chave dos meus pensamentos para encarar uma lógica que, por mais que um dia eu tenha vindo a achar que conhecesse, desconheço tão amplamente que cheguei a sentir raiva desse não saber escancarado durante a leitura. O meu, sobre o masculino.


Aliás, se há algo que me pegou na escrita de Ricardo foi o seu movimento rock and roll, na melhor analogia que a expressão possa ter com as ideias de originalidade e de liberdade. É nesse movimento que, inclusive literalmente, suas muitas referências pops me falam direto, como ficou claro logo no início deste texto. Afinal, está na cara que Do amor louco e outros amores foi amor à primeira vista ou, em outras palavras, a conexão mágica do amor pelas palavras escritas de alguém.



P.S.: O título deste texto é uma brincadeira com o título de Desler Lacan, outro livro de Ricardo Goldenberg.

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