Tenho procurado alguma poesia, nos livros, no céu, nas coisas.
Nos devaneios de uma noite insone, sentindo o estômago enjoado, eu procurava alguma poesia quando peguei o celular para olhar as horas e descobrir que passava das quatro da manhã. Aproveitei para conferir se havia alguma mensagem, uma resposta. Não, ele não havia respondido. Olhei para o teto e tentei me agarrar a pensamento algum, me pendurar num devaneio que me levasse para longe dali, para um lugar onde o falatório daquele dia se dissipasse e cedesse espaço para alguma poesia. Ao invés disso, voltei a pensar na pergunta.
Haverá alguma poesia no momento em que nos acharmos envoltos pela vida nos contornos da morte?
Tenho procurado alguma poesia, mas só a encontro às escondidas, longe das vozes que me rodeiam e que me envolvem num hálito fétido, vozes que fazem com que eu me sinta suja, insensível, morta.
Tenho procurado alguma poesia para colocar no lugar daquela que me escapou no passar dos anos, aquela que deixei vazar, de propósito, para tentar sofrer menos enquanto tentava ser mais. Mais o quê?
Tenho procurado alguma poesia, que segue me escapando quando ouço ressoar a voz que me faz sentir suja, errada, grotesca. A voz do “homenino” - esse termo não é meu, é da Tania Rivera, que um dia me disse, enquanto escrevia a dedicatória em um livro seu que eu acabara de comprar, “vomite” -, do “homenino” de sessenta anos postado, em pé, na minha frente, as mãos apoiadas no encosto da cadeira de outro homem, uma das mãos que minutos atrás ele havia pousado nas minhas costas enquanto dizia algo que eu não podia ouvir pois o asco que eu sentia daquela mão falava muito mais alto, paralisando e calando todos os meus sentidos e movimentos, e na minha cabeça eu só pensava, tira a mão, tira a mão, tira a mão, não coloca a mão em mim, não encosta no meu cabelo, que nojo, que nojo, que nojo, e minutos depois o “homenino” postado na minha frente enuncia, profere, declama, proclama, “uau, fulano, você, hein, mais um homem, você não dorme em serviço, você é foda, hein, uau, uau, uau”, algo assim, o “homenino” disse algo assim para o outro homem, o homem que estava sentado na cadeira esperando o nascimento de mais um homem numa família cujas crianças, até aquele momento, são todas homens, e a palavra “fraquejada” começou a soar dentro da minha cabeça e do meu estômago, que imediatamente enjoou, revirou, apertou.
Procurando alguma poesia, esbarro no tédio e na monotonia de uma vida aparentemente vazia, uma vida que vejo através da porta escancarada da casa de esquina do condomínio repleto de casas indistintas, todas quadradas e (des)coloridas com tons de cinza, e também na tela da televisão, nos planos fechados filmados por Chantal Akerman dentro do apartamento de Jeanne Dielman, onde a personagem se movimenta de forma obsessiva e eficiente, abrindo e fechando portas, acendendo e apagando luzes, abotoando e desabotoando vestimentas, até não aguentar mais, até enlouquecer, pois viver sem poesia enlouquece, ainda que imperceptivelmente, ainda que milimetricamente, dia após dia.
Ao procurar alguma poesia, lembro das horas passadas dentro do meu quarto no último inverno, segurando Inverno da alma, de Katherine May, nas mãos, os olhos grudados nas páginas do livro, o calor dos pequenos corpos do Sig e da Amora contra o meu. Nos amontoamos como imagino que só uma verdadeira matilha faz.
Atualmente, quando procuro alguma poesia, sou levada até o sol, o de quindim, o que me fez chorar no deserto, e vejo a areia rodopiando até sumir, até ser varrida, talvez para as montanhas, pelo vento cujo barulho eu nunca mais parei de ouvir.
Procurando alguma poesia eu jogo uma garrafa no mar, dentro dela um bilhete direto, um pouco ressentido. Como efetivamente dizer a alguém que os anos de afastamento e de suposta indiferença não foram indiferentes? Como expressar a raiva e a angústia que eu senti?
Fosse eu uma poeta, certamente encontraria, nas pontas dos meus dedos, uma poesia que desenhasse, com palavras e versos concisos, as imagens da minha deriva, o medo de, mesmo sabendo nadar, me afogar sem poder antes falar com você, pois a verdade é que eu estou envelhecendo e morrendo de medo de não ter com quem fazer a última piada.
(E piada, convenhamos, é coisa muito séria, que nem todo mundo entende.)
Tenho me esforçado e procurado alguma poesia, mas nem sempre encontro. Acho que poesia não é coisa que se force, assim como o humor, o amor ou tudo aquilo que eu passei meses percebendo que você queria me dizer, mas só li uma parte. O resto escorregou pelo chão, girou no ar.
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