sexta-feira, 7 de junho de 2019

Exquisita

"Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,

(...)

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo..."

Mário de Andrade em Eu sou trezentos...


Logo que comecei a escrever este blog, uma amiga da época me disse que o ideal seria restringir o tema, ou seja, que eu deveria escrever sobre algo específico, de maneira que o blog tratasse de um único assunto, viagens, por exemplo, pois do contrário ficava assim meio esquisito, meio fora dos padrões, meio sei lá. Enfim, o legal seria enquadrar a coisa toda para que ela coubesse em algum lugar.

Passados muitos anos, é possível notar que ignorei completamente o conselho e, se não lembro qual foi a resposta que dei para a tal amiga naquela tarde de caminhada pelas ruas de Pinheiros, hoje, passada uma eternidade sem ter notícias suas, eu poderia começar lhe dizendo do impossível que é para mim ser uma só, dentro ou fora do papel (ou da tela, para ser mais precisa).

Eu sou muitas e isso é algo que transborda de mim, suplantando qualquer tentativa de contenção. Restringir a minha escrita a um único tema para tornar algo que me é tão precioso (a possibilidade de me exprimir) em algo mais aceitável seja lá de que ponto de vista for não faz o menor sentido. Aliás, fazer sentido tampouco faz sentido desde a primeira palavra deste blog. Sei que somos todos um tanto quanto obcecados por comportamentos supostamente lineares (embora nossas ações nos mostrem o tempo todo que grande parte do que fazemos na vida não obedece exatamente a uma lógica racional), mas será que precisamos mesmo agir sempre assim, com tudo, até com um blog que nunca teve outra intenção senão a de ser simplesmente escrito e eventualmente lido?

Penso que não. Aliás, como o próprio nome do blog sugere, o meu principal objetivo aqui sempre foi pensar as inúmeras coisas que me atravessam, das quais algumas me rasgam e outras me dão contornos com os quais até mesmo eu me surpreendo. Coisas que quando condensadas no espaço de uma tela em branco podem também encontrar, como não raro acontece, lugar no corpo de quem se permite sentir o inadequado que é o que de real, simbólico e imaginário forma os nós e os laços humanos.

Desde o início eu soube, intuitivamente, que não daria para restringir ou comercializar nada do tudo que é meu que está aqui; sem sabê-lo, eu sabia que a escrita seria sem concessões, mas não sabia, como ainda não sei, até aonde eu poderia ir, até onde eu poderia me expor. Porque escrever, como eu disse aqui (e foi um custo, naquele momento, fazê-lo), é se expor. É agarrar e digitar com a mesma mão as palavras que saem em borbotões simbólicos jorrados por alguma entranha inquieta. Algumas vezes é só deixar fluir um pensamento que passa direto de algum ponto do cérebro para as pontas dos dedos e que aparece na tela ao mesmo tempo que ressoa dentro do crânio, como se as palavras escritas fossem a legenda de um filme falado na mesma língua delas. Em outros momentos é isso tudo mais as lágrimas que finalmente saem das cavidades dos olhos, onde estavam entupindo alguma passagem importante para frente ou para trás.

É por isso que, ao contrário da opinião de muitos, admiro ainda mais aquela que hoje é minha escritora preferida, Elena Ferrante, de quem nada se sabe e tudo se especula. Ferrante escreve sob um pseudônimo, só dá entrevistas por e-mail e sua vida privada, mesmo sendo seus livros mundialmente conhecidos, é desconhecida. Chego a achar idílica essa perspectiva de anonimato, pois escrever é resvalar em tudo e em todos e, para mim, isso ainda é trabalho em andamento.

Tão impossível quanto encaixotar o conteúdo da minha escrita é moldar, ao gosto do outro, o meu estilo. Outra amiga, da qual nada sei atualmente, a certa altura me disse que eu deveria escrever com menos pausas, de uma maneira mais direta, mais clara, a exemplo do seu noivo e, imagino, atual marido, um jornalista cuja língua mãe não é o Português. Pois bem, confesso que até tentei mudar um pouco, naquele esforço que até então eu ainda fazia para tentar agradar alguém querido, mas não rolou. O mais curioso nessa história é que a dica dessa amiga veio vestida de uma roupagem racional que o tempo e a distância provaram ter outras motivações, todas, a meu ver, inconscientes e desprovidas de sentido lógico, pois uma pessoa provida de cultura literária e formada em Letras jamais, racionalmente falando, diria a alguém que escreve que determinado estilo é melhor que outro. Escrever é algo que de tão pessoal chega a doer; é íntimo e delicado como quase nenhum outro ato, de maneira que a escrita de uma pessoa não se compara com a de outra e, nesse caso, ser leitor basta para saber disso. Pode-se, evidentemente, não gostar da escrita de um ou de outro, mas não compará-la e querer moldá-la à daqueles de quem se gosta, sejam eles detentores do falo ou não.

E por falar em encaixotar, penso que a impossibilidade de fazê-lo talvez seja o traço comum que nos une a todas que eu sou. Todas condensadas num só corpo e numa racionalidade aparente que andam por aí como Clarice McClellan nas páginas iniciais de Fahrenheit 451, observando as coisas e as pessoas e pensando na inadequação da adequação que a cerca. Pensando, talvez, em como é bom ser exquisita.

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