"Não se pode simular coragem,
é uma virtude que escapa à hipocrisia."
Napoleão, citado por João Nery no início do capítulo 10 de Viagem solitária
Como escrevi aqui, acredito que a literatura, e também as artes em geral, têm um poder enorme de nos transportar para lugares outros, inclusive para o lugar de um outro. Um poder tão grande que às vezes um livro ou um filme são capazes de nos colocar, mesmo que apenas por alguns segundos, no interior da pele de outra criatura.
Partindo desse pressuposto, creio que nada melhor do que poder compartilhar alguns livros e filmes que me fizeram sentir, por instantes que a fantasia transformou em realidade (ainda que infinitamente mais amena que a daquele que a vive ou viveu no mundo real), a dor de estar no corpo de alguém que não o reconhece como seu.
Aliás, tenho pensado muito a esse respeito e acho que, de uma certa forma, a questão da identidade de gênero só aumenta ainda mais a complexidade de uma questão que talvez a preceda ou englobe e que é inerente a todo o ser humano, a da identidade de cada um de nós. Também aqui falei um pouco sobre isso quando escrevi a respeito do que, para mim, é ser mulher.
Os dois livros que tenho em mente são A garota dinamarquesa, de David Ebershoff, e Viagem solitária: memórias de um transexual 30 anos depois, de João W. Nery. O primeiro é um romance, uma ficção baseada na história real de Lili Elbe, que viveu por anos na pele do pintor dinamarquês Einar Wegener. O livro virou um filme famoso que garante bons momentos de beleza e reflexão. Na comparação entre livro e filme, nenhum deles ganha ou perde, ambos simplesmente se completam e não se repetem.
Falando em filme, Girl, que pode ser encontrado na Netflix, usa e abusa da ambivalência entre crueza e delicadeza para criar uma obra que atira no sofá a angústia da personagem Lara, uma garota trans que, mesmo contando com o apoio do pai e vivendo numa sociedade aparentemente mais avançada no que se refere ao processo de transição de gênero, tem que lidar com as inúmeras dificuldades de ordem emocional e psíquica que a atravessam tanto pela sua idade como pelo fato de que a transição não acontece no ritmo por ela desejado. O desfecho da obra ilustra com clareza brutal o desespero de não se poder ser, desde sempre e de quando se quer, de corpo e alma, quem se é.
Agora, foi o livro de João Nery, considerado o primeiro trans-homem do Brasil, que me deixou pensando loucamente no inominável da sensação de nascer num corpo que lhe é estranho. Uma sensação, talvez, de aprisionamento que eventualmente pode ser muito parecida com aquela que diz respeito à questão da identidade de todos nós, aquela identidade que muitos talvez morram sem descobrir qual é por medo de ousar tocar em limites construídos a partir de regras que não só não entendemos como também não questionamos.
Num relato cuja sinceridade atinge em cheio o leitor, João me fez rir, chorar, pensar e talvez até tatear algumas bordas que eu ainda não havia explorado. É daqueles livros que inevitavelmente criam movimento em quem os lê e que o empurram na direção da compreensão do incompreensível da sua condição de humano.
Ao longo da vida e do livro, João passou por muitos amores e desamores, dores físicas e emocionais, frustrações e perdas de toda ordem (como a do próprio diploma de psicólogo), mas nunca se entregou ao conformismo e, por isso mesmo, terminou por não acabar. Ao contrário do que aconteceu e do que provavelmente acontecerá com aqueles que não suportam ver sua covardia refletida na coragem de outros, a viagem de João nunca terá fim nas palavras de vida que ele deixou escritas para quem o quisesse acompanhar. Nessa viagem solitária que é a de todos nós, João é daquelas companhias que, ainda que não permaneçam para sempre ao nosso lado, estarão em algum canto de nós, dizendo, como ele o faz citando Clemenceau no primeiro capítulo de seu livro, que "a vida é uma oportunidade de ousar".
Ao longo da vida e do livro, João passou por muitos amores e desamores, dores físicas e emocionais, frustrações e perdas de toda ordem (como a do próprio diploma de psicólogo), mas nunca se entregou ao conformismo e, por isso mesmo, terminou por não acabar. Ao contrário do que aconteceu e do que provavelmente acontecerá com aqueles que não suportam ver sua covardia refletida na coragem de outros, a viagem de João nunca terá fim nas palavras de vida que ele deixou escritas para quem o quisesse acompanhar. Nessa viagem solitária que é a de todos nós, João é daquelas companhias que, ainda que não permaneçam para sempre ao nosso lado, estarão em algum canto de nós, dizendo, como ele o faz citando Clemenceau no primeiro capítulo de seu livro, que "a vida é uma oportunidade de ousar".
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