Final da tarde de um dia ensolarado em Santos. Entro na pequena sala de cinema à beira-mar acompanhada pela minha mãe para vermos um filme sobre o qual temos uma única informação: é com a Vera Holtz.
Sala lotada. Chegamos com algum atraso, cinco minutos no máximo, os quais foram suficientes para quase não conseguirmos ingressos e para nos privar da primeira cena que, agora, ao assistir ao filme pela segunda vez, entendo ser essencial para a narrativa; não só a primeira, aliás, como também a última, numa amarração muito bem feita do roteiro, dessas que dão gosto de ver.
O filme termina e me pego meio nocauteada, saindo da sala em silêncio e com a última cena grudada na retina. Respiro e olho o mar que está logo ali, aquela imensidão de água em movimento, o mar, leve e denso, uma das melhores representações da liberdade. Não digo para a minha mãe tudo o que vai pela minha cabeça, pois naquele momento penso em questões que acometem grande parte das famílias e que ficam mais pungentes na época das festas de final de ano, especialmente no Natal, que é exatamente a data em que a história se desenrola. Penso nessas questões e também na minha avó e na minha tia-avó, cujas demandas por cuidados, por períodos maiores ou menores da vida da minha mãe, achei que acabariam por deixá-la doente, por deixá-la louca.
Depois disso, levei o filme por dias a fio dentro de mim, o quadro da última cena sempre se repetindo, eu pensando que gostaria de ter aquela imagem pendurada na parede do meu consultório.
Um ou dois anos se passam e Tia Virgínia, cuidadosamente guardado nos meus registros internos, volta à baila quando o Sesc Sorocaba me convida para a curadoria de uma mostra sobre narrativas do envelhecimento. O filme de Fabio Meira, que em 2023 rendeu o Kikito de Ouro no Festival de Gramado para Vera Holtz, é um dos primeiros que aparecem na tela do computador quando começo a digitar a lista de filmes para a mostra.
Revendo Tia Virgínia, percebo que não foi à toa que ele se colocou naquela lista. A obra aborda não uma, mas várias questões relativas ao envelhecimento, como os cuidados com quem envelhece e com quem cuida de quem envelhece (e que muitas vezes também é alguém que já está em alguma fase do envelhecimento), como e por quem é feita a escolha ou a imposição dos cuidados, quem paga, quanto paga e, mais precisamente, com o que se paga por isso, sendo esta última questão habilmente encarnada pela personagem de Vera Holtz, a Tia Virgínia.
Virgínia é uma mulher na casa dos 70 anos que, por uma espécie de imposição de suas duas outras irmãs, mudou-se para a casa da sua infância para, entre paredes, móveis e objetos repletos de recordações, cuidar de sua mãe, de 99 anos. Única das três irmãs a não se casar e a não ter filhos, Virgínia, quando jovem, queria ser atriz e chegou mesmo a participar de uma montagem de A Casa de Bernarda Alba, peça de Federico García Lorca, tendo, no entanto, sua carreira abortada pela família, para a qual aquela não era uma profissão aceitável, não para uma mulher.
À medida que o filme vai se desenrolando, contudo, fica claro que Virgínia não perdeu a sua verve teatral. Desde o início, ela nos reserva, e aos seus familiares, uma grande surpresa, um último e também um primeiro ato. A tensão que prende o espectador à tela do início ao fim do filme não se restringe à gama de sentimentos que se desprendem dos enfrentamentos que são característicos das reuniões de família; a tensão é principalmente criada pela performance de Virgínia.
O sujeito não envelhece, é o que se diz em psicanálise, o que, de maneira extremamente resumida, quer dizer que o inconsciente não tem idade, e penso que Virgínia é um grande exemplo disso. Para além de tudo o que viveu até os 70 anos, ou melhor dizendo, do que não viveu até então, ela percebe, de uma forma ou de outra, que está aqui de passagem, e que tanto faz o momento em que o sonho vai tentar virar realidade, em que a pera que se esqueceu dormindo numa fruteira vai acordar. O que importa é finalmente deixar de observar o tempo para finalmente se colocar ativamente em marcha junto dele.
Entre Um gosto de Sol e Cais, é no movimento que a imagem para e que o último ato da peça encenada por Virgínia se converte no primeiro de uma caminhada, esta, agora, só sua.
Da fotografia do filme, muito bem cuidada, a que eu quero levar para a parede.
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O filme será exibido no Sesc Sorocaba na próxima terça-feira, dia 15/04, às 19h. Os ingressos são gratuitos e, após a sessão, tem bate-papo para discussão do filme.
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