quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Eu chinesa

"La réponse est le malheur de la question." ("A resposta é a desgraça da pergunta.")

Maurice Blanchot, citado por Ricardo Goldenberg em Desler Lacan



Eu devia estar na quinta ou sexta série do ensino fundamental quando li Henfil na China (antes da Coca-Cola) e pensei que, dado o grau de divertimento alcançado com a leitura (o livro era hilário), eu deveria um dia fazer como o Henfil e ir também à China. 

A melhor oportunidade de concretizar meu antigo desejo surgiu quando Daniela, minha amiga e companheira incansável de viagens filosóficas, psicanalíticas, cinematográficas, yoguis, ciclísticas, políticas, confessionais e agora literais, falou: é o nosso último ano na China; ou você vai ou você vai. Fui, e não queria voltar. Ou não tão cedo.

Da China voltei impressionada na mesma escala do que se vê por lá, ou seja, em enormes proporções. Nunca antes lugar algum havia feito impressão tão grande em mim. Uma impressão para a qual, além das medidas, eu não alcanço as palavras que ainda estão orbitando algum lugar distante do meu sistema solar interior. A China é outro planeta, agora parte do universo particular onde habita o meu.

Lá me vi, mas só depois, encantada pelo som da língua da qual eu nada entendia, mas via. Olhava para os rostos, bocas e olhos das pessoas que diziam e era tomada por um embasbacamento que fazia voltas em mim, me deixando imóvel de surpresa diante do maravilhoso da impossibilidade total. Surpresa que é a palavra resumo da viagem porque a China foi uma grande surpresa, um presente que está se desembrulhando aos poucos e revelando, para mim, a estrangeira que eu nunca fui no dentro (fora, sempre) mas que agora eu sou também. Estranha que me chama para desvendá-la. De novo aqui, o enigma. Ou me devora.

Na China meus olhos viraram bocas e eu comia tudo o que conseguia ver. Todas as cores, texturas, formas e amplitudes. Eu queria engolir o ininteligível e guardar o choque dentro do estômago. Queria, talvez, alimentar a estranha que voltou comigo, fazê-la crescer in loco.

Sem palavras ou com palavras mal articuladas, fiquei sem ter como falar dos cheiros que invadiam as cidades. Se em Paris é uma festa Hemingway fala que andar por Paris com fome era um sacrifício, dados os aromas de comida que eram sentidos durante uma caminhada pelas ruas da cidade, fico curiosa para saber o que ele diria de Xi´an, por exemplo, onde o cheiro azedo-amargo-doce-amarelo-apimentado invade ruas, casas, estações e vagões de metrô e cola em todas as superfícies, do metal à carne humana. Um passeio de bicicleta em cima das muralhas que circundam a cidade é integralmente acompanhado pelo cheiro de comida que, recentemente, numa atitude nonsense, me surpreendi buscando na cidade onde moro.

Nonsense que já durante a viagem escorregou para o centro da lógica que eu acreditava reta e a torceu, fazendo da fita chapada a lógica de modos infinitos ainda não pensados por mim.

Ir à China é como ouvir a versão de Purple Rain do disco Piano & a Microphone 1983, ou seja, não é nada daquilo que você espera e tem um arranjo que simplesmente deixa seu cérebro no vácuo, sem produzir as respostas esperadas na versão original. A China me deixou no vácuo do meu próprio controle, sem produzir as respostas esperadas.

Pelo lado do avesso, etereamente out of control, voltei borbulhando de perguntas que, agraciados sejam os paradoxos, são também respostas, todos capazes de me descolar da minha fina casca interior, de onde eu escorrego para dentro, para o mais dentro de um fluido silencioso onde não há nada escrito além da verdade de mim.

No Brasil, com as suas, nossas e com as dores que eu não sentia há anos, hoje acordei à procura, no espelho, do silêncio do líquido viscoso. É aqui, no reflexo das palavras, que eu o encontro.


P.S.: O título deste texto é uma brincadeira inspirada no livro de Cleyton Andrade, Lacan chinês: poesia, ideograma e caligrafia chinesa de uma psicanáliseque, lido após o meu retorno, estabeleceu algumas bases para paradoxos, ideias e mais perguntas.

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