Por que não? Foi com essa pergunta que dei início a um trabalho arqueológico um pouco diferente daquele que, na minha infância, eu imaginava quando dizia que um dia seria arqueóloga. De volta para o interior, comecei a escavar e a remover escombros sob os quais, massacrados, encontrei um punhado de desejos. Um deles era o de conhecer a psicanálise e de ter conversas mais profundas com Freud, desejo nascido, como não poderia deixar de ser, das palavras, daquelas que eu via saírem da boca de Marilena Chauí junto da fumaça dos seus cigarros numa sala quente e apinhada de alunos num dos prédios do Departamento de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Entre os afetos, as afecções, as proposições e demonstrações da Ética de Espinosa, em meio ao humano definido como desejo, Marilena invariavelmente mencionava Freud, ou pelo menos é assim que eu me lembro dela.
Resgatado dos escombros e restaurado, o desejo pela psicanálise foi aos poucos criando movimentos que finalmente me levaram até Freud, por cujas palavras - de novo o amor pelas palavras, tão explícito nas hestórias da psicanálise -, eu me apaixonei.
Do baixo da minha ignorância nem de longe eu sonhava encontrar nos textos de Freud o que encontrei. Foi como descobrir que um novo planeta existia e que era possível explorá-lo de perto, remexendo, inclusive, nos seus escombros. Foi descobrir que aquilo que me incomodava na filosofia pode, de uma certa maneira, ser superado por outra forma de ver as coisas, uma forma talvez ainda mais livre, mais marginal, menos engessada e mais viajante. Em Freud eu enxerguei humildade, confissão do fracasso, ousadia, liberdade, segurança, agudeza de espírito, perspicácia, sínteses absolutamente inesperadas, poesia, amor, vida pulsando em Eros, ausência de moralismos, compaixão mas, acima de tudo, um escritor brilhante. Freud, para mim, é um escritor brilhante e talvez esse seja, ao fim e ao cabo, o motivo do meu arrebatamento tão apaixonado, porque é simplesmente impossível não se render a tamanha beleza estilística, a uma simplicidade narrativa tão sofisticada, a tanta inteligência e, principalmente, ao amor que ele, Freud, demonstra ter pelas palavras. Porque - e aqui peço para que por favor me corrijam se eu estiver equivocada - psicanálise é de palavras que se trata, não é?
Em meio ao meu trabalho arqueológico e ao meu apaixonamento freudiano, e como sempre levada pelas palavras, lembrei de um documentário cujo trailer eu havia assistido há alguns anos no Espaço Itaú de Cinema (que para mim será eternamente Espaço Unibanco), numa das salas que ficavam a uns quinze minutos a pé, na época, da minha casa, nas quais passei décadas me refugiando. Aliás, vale dizer que sempre penso que se tivesse que eleger um templo para adorar alguma coisa esse templo seria o cinema, lugar onde nunca deixei de encontrar refúgio, recolhimento e transformação.
O nome do documentário era Hestórias da Psicanálise - Leitores de Freud e ao assistir ao trailer pensei, preciso ver esse filme. Só que dei bobeira e, no fim de semana seguinte, ao procurar o horário das sessões no Guia da Folha, descobri que ele não estava mais em cartaz.
A questão é que aquele era um título impossível de ser esquecido, tanto pela impressão que o trailer havia me causado quanto pelo nome do documentário, que tinha me deixado com a pulga atrás da orelha (também conhecida como angústia de não saber). Por que, afinal, hestórias? Por que não histórias? Ou estórias? O que esse título tinha a dizer? Procurei pelo filme em todos os cantos, da Amazon ao streaming, sem êxito, até que, em meio a escavações analíticas que iam a todo vapor, topei com o detentor das chaves para o mistério do documentário perdido, Francisco Capoulade.
O feliz resultado desse encontro é outro encontro, que se dará no próximo sábado, 30 de maio, às 18h, no Zoom, onde não só poderei rever o filme (sim, eu finalmente o assisti) como poderei fazê-lo na companhia de muitos outros que ainda não o assistiram ou que gostariam de fazê-lo novamente (porque uma vez só é pouco e a vontade mesmo é a de ter uma cópia em casa para rever de tempos em tempos, no ritmo das transformações que as leituras de Freud e da vida fazem conosco) e na do próprio Francisco, com quem todos poderemos conversar após a exibição do documentário.
O evento é gratuito, aberto ao público e as vagas são limitadas. Informações e inscrições pelo e-mail freudemcena@gmail.com.
Nos vemos lá?
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Agradeço imensamente a Francisco Capoulade por ter aceitado o convite, disponibilizado o documentário e, mais ainda, por tê-lo realizado; a Cristiane Futagawa (Sushi), pela consultoria e apoio técnicos, e a Patricia Lopes Martin, pelas outras chaves.
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